Opinião sobre o caipira que passou concurso p juiz - Amanda

Prezado, Dr. Milton!

O chamo assim e espero que não receba com estranheza a nomenclatura de Doutor (embora eu me estranhe toda vez que me chamam), pois não encontro modo mais cortês para me dirigir a um Juiz de Direito.

Após nossa conversa de ontem, e como a curiosidade que habita em mim costuma ser despertada para bons casos, especialmente os reais, resolvi pesquisar a tal ‘história do caipira’ que mencionou. Acabei encontrando-a primeiramente em uma matéria da Revista Mídia cujo título é “Dr. Milton Furquim: da zona rural para as salas de aulas até os Tribunais de Justiça”, onde o senhor compartilha a resposta que deu ao estudante de direito que, após audiência de instrução e julgamento, lhe questionou sobre o que deveria fazer para passar no concurso da magistratura e se tornar bem sucedido. Posteriormente, e, para a minha surpresa, encontrei o texto “Conheça a história de um caipira que passou no concurso para juiz de direito”, juntamente a vários outros publicados no site Recanto das Letras.

Despertou-me a vontade de escrever-lhe, pois, conhecendo parcialmente sua história de vida, sob a ótica apresentada nos textos que li, cristalino se torna o enredo de seus traços de personalidade demonstrados ontem ao me atender, tão prontamente, atenciosamente e cordialmente.

Se me permite uma breve análise, tenho para mim que sua simplicidade advém de sua origem, todavia o fato de conservá-la até os dias atuais é algo proeminente de seu caráter e ponto de vista ético. Levantar às três da manhã para ir trabalhar, e o fazer por todo o dia, desempenhando tarefa tão árdua e de tamanha relevância social como a de ser juiz, e, ainda, atendendo a população com tanta disponibilidade, a priori me pareceu algo ‘fora do comum’, e por mais que de fato não seja algo que corriqueiramente avistamos por aí, hoje me parece tratar-se de algo que faz parte de sua construção. Veja, como esperar que uma pessoa que habitualmente trabalhou em três turnos se acostume com o labor de 8 horas diárias?! Fechar e abrir estabelecimentos comerciais da cidade, e ter boa relação com pessoas tomadas pelo vício (embora todos tenhamos alguns), deve fazer com que relembre um período de sua vida, que embora árduo, lhe fez chegar onde chegou, como o tempo em que a companhia dos boêmios faziam parte de seu cotidiano noturno.

Muito me agrada saber que temos na Comarca um magistrado que não se esquece de onde veio, e mantém suas raízes e sua simplicidade. Sinto que, especialmente no meio em que estamos inseridos (me refiro ao âmbito jurídico), escassos estão o que posso chamar de ‘pessoas reais’. A soberba parece ocupar os dias de muitos que cresceram em ‘berço de ouro’ ou que chegaram a um patamar em que consideram correto alterar seus traços para agradar ou menosprezar outras pessoas, vez que se sentem em grau de superioridade.

Embora distinta, sua história me remeteu a minha trajetória de vida para conseguir me tornar advogada.

Não tive o prazer de ter um pai presente, infelizmente mais um desses casos de abandono afetivo por homens que geram filhos e, após, desaparecem e se esquivam de qualquer responsabilidade (hoje isso não me afeta mais, mas houve um momento em que me fez perder algumas noites de sono). Fui criada por minha mãe e meus avós, pessoas extremamente humildes e com um coração que não se podia mensurar (me refiro a eles no passado pois, apesar de minha mãe permanecer entre nós, meus avós partiram em 2011 e 2012). As coisas ficaram mais difíceis depois que eles se foram, mas minha mãe sempre batalhou para que pudéssemos enfrentar as turbulências e adversidades. Desde logo decidi que precisava trabalhar para ajudar em casa. No início, ainda no turno vespertino do ensino fundamental, vendia trufas para uma professora durante o intervalo para ganhar algum dinheiro (e paralelamente enfrentava zombaria de colegas de turma). Decidi mudar de escola e passar a estudar no período da manhã para conseguir algum trabalho durante a tarde, todavia não obtive êxito, haja vista que ninguém queria correr os riscos de enfrentar uma ação trabalhista por contratar uma menina de 13 anos. Finalmente, aos 15, fui aprovada em um processo seletivo para jovem aprendiz em um supermercado local, fui direcionada para o setor de recursos humanos e gradativamente fui sendo promovida. Fato é, que o fim do ensino médio estava próximo e desde menina meu sonho era cursar Direito. A remuneração que percebia como salário não seria suficiente para custear a faculdade e me permitir auxiliar nas despesas básicas do lar, e minha mãe não possuía condição financeira para ‘bancar’ um curso de graduação. Resolvi me dedicar ainda mais aos estudos e tentar algo pelo ENEM. Especialmente por conta da redação fui surpreendida com uma boa nota que me permitiria tentar o curso ora citado em uma universidade federal ou particular. Infelizmente, não havia modos de sair da cidade para cursar uma instituição federal, pois não teria condições financeiras para me sustentar, mas, para minha sorte, Guaxupé tinha e ainda tem o curso de Direito no Unifeg e, pela nota obtida no ENEM, fui contemplada com bolsa integral pelo ProUni, o que me permitiu realizar esse grande sonho. As dificuldades que enfrentei me parecem bem simples se comparadas às suas, mas enormes perto de tantas outras pessoas que ‘vencem’ na vida às custas dos pais ou de suas indicações, afinal, não são todos que precisam correr atrás do que almejam, considerando que muitos os tem com tamanha facilidade. Enfim, minha história continua, pois não se resume 23 anos em poucas linhas, do mesmo modo que acredito que o senhor tenha tantas outras para contar, todavia não me prolongarei por não ser este o objetivo deste contato.

De fato, lhe envio esta mensagem para agradecer e explanar minha singela opinião sobre aquilo que li. Acredito veemente que compartilhar histórias é algo fundamental para despertar o melhor no próximo, ou seja, uma das tantas formas de se fazer a diferença na vida de alguém. Me senti representada pelo artigo que retrata sua trajetória e tenho certeza que outras muitas pessoas também se sentiram ou sentirão. Deste modo, espero que Deus lhe dê muita saúde e lhe permita exercer a profissão que tanto ama por muitos anos, e, ainda, desejo que seus textos continuem sendo escritos, publicados e que permaneçam inspirando pessoas no decurso do tempo.

Peço minhas sinceras desculpas se em algum momento possa ter sido indelicada, inconveniente, massante ou algo similar, e espero que não me interprete mal, apenas gosto de exteriorizar o que penso e acredito que coisas positivas devam ser compartilhadas.

Grande abraço!

Atenciosamente,

Amanda Caram (Advogada em Guaxupé-MG).

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 04/05/2023
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