O que lhe resta é chorar

Já faziam três semanas que eu não olhava pra dentro daqueles olhos vazios. Só consegui reparar no corte "novo" de cabelo depois de ter olhado profundamente no grão daqueles olhos envoltos por olheiras tão escuras quanto seus cabelos negros. A barba mal feita e o cabelo e rosto oleosos só entregavam ainda mais o estado deprimente em que se encontrava.

- Há quantos dias não dorme? - minha única pergunta. Eu já sabia que faziam pelo menos três, porque um amigo em comum havia me procurado dizendo que ele estava seguindo uma dieta a base de remédios tarja preta, acompanhados do meu vinho preferido.

Ele não respondeu minha pergunta. Não ouvi nem uma palavra sequer. Aqueles olhos vazios só ficaram ali estagnados, me olhando como se quisessem sorrir, ao mesmo tempo que pareciam chorar de dor. E aos poucos um brilho no olhar foi surgindo, mas o brilho dessa vez era diferente. Com os olhos rasos d'água, sem proferir uma palavra, só me puxou pra perto. Me segurou como se não quisesse que eu fugisse e entre seus sussurros agonizantes e quase gritos de desespero eu me senti tão má. Aquele homem de um metro e noventa chorava feito criança e dessa vez não tinha nada de engraçado naquilo.

- Não adianta chorar - era o que eu queria ter dito, mas não disse.

Envolta naquele abraço apertado de mais de cinco minutos, eu só conseguia pensar no quanto eu estava errada em estar ali. Eu não esperava nada disso. Eu não esperava aquele silêncio e nem ter ouvido aqueles olhos dizerem tantas coisas que eu jamais ouvi daquela boca.

- Fica calmo, vamos entrar e conversar - foi o que eu pensei em dizer, mas não disse. Eu já cansei de conversar, sabe. Eu já cansei de subir os três lances de escada daquele apartamento pra ficar falando sozinha até entrar em colapso e sair batendo a porta.

Eu já cansei de chorar igual criança, de abraçar com força tentando segurar aquilo que já havia escorrido pelo vão dos dedos.

- Chega - foi o que eu disse enquanto dava um passo pra trás, o empurrava pelo peito e secava a única lágrima que meus olhos haviam derramado. No calor do abraço mais apertado que ele já havia me dado, durante aqueles longos minutos, eu havia esquecido brevemente que já estava cansada. Tarde demais praquele abraço, eu já estava cansada de tudo.

E mesmo querendo ficar, eu só consegui deixar ele ali, aos prantos, sem que conseguisse me dizer uma palavra. Atravessei a rua e desci o quarteirão, e quando olhei pra trás ele ainda estava lá, estático, me olhando ir embora com o mesmo olhar vazio, com as mãos na nuca e um choro tão alto que eu quase conseguia ouvir do outro lado do quarteirão.

Hoje eu soube que ele ainda chora, já faz quase uma semana e ele ainda chora. Ele chora porque precisa externar um pouco do peso das consequências dos seus atos. Chora porque sabe quantas vezes eu quis ir embora e me esforcei pra ficar. Ele sabe quantas vezes eu fiquei, mesmo tendo a certeza de que deveria ir. Ele sabe que eu não queria ter fugido. Ele sempre soube. E por saber de tudo isso, também sabe que agora é tarde pra me implorar pra ficar. Ele sabe que agora é tarde, é por isso que chora, o que lhe resta é chorar.

Angelica Stefaniak
Enviado por Angelica Stefaniak em 09/05/2023
Reeditado em 12/05/2023
Código do texto: T7783517
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