Pois é, Rita .

Se eu pudesse conversar com você, teria muita vergonha. Vergonha de mim, sem dúvida.

Demorou muito para eu entender que o meu problema não era com você, com as suas músicas alegres, despojadas e vibrantes. O meu problema não era com a sua ousadia, as roupas brilhantes e fora do convencional...

Mas eu a odiava todas as vezes em que chegava em casa, abria a porta e ouvia você, aos berros, no gravador do meu irmão no seu quarto a portas fechadas. Eu, da forma mais ignorante, lhe detestava.

Se eu pudesse, agora na maturidade, me sentar à sua frente, eu lhe pediria perdão. Em maiúsculo, pois o meu problema era justamente ... o meu irmão. Além dele, o pior, o mais angustiante, era o tempo.

Enquanto você cantava “levava uma vida sossegadaaaa”, lá na delegacia, vizinha ao nosso apartamento no Cambuci, havia tortura ... e eu escutava os gritos desesperados pelas madrugadas. E você continuava “gostava de sombra e água frescaaaaaaaa”. E eu, filha de um pai sempre doente e desempregado, endividado, não tinha como convencê-lo de que eu, ainda menor de idade, queria trabalhar. Eu não queria saber de água fresca mesmo.

O ano: 1975. Tempos de ditadura e do assassinato do Wladimir Herzog. Tempos de trovoadas, raios... e eu me sentia até ofendida pelas suas canções.

Eu te peço perdão, Rita. Eu poderia tê-la visto e sentido como oxigênio num tempo desgraçadamente amordaçado! Eu poderia ter me inspirado à alegria e não o fiz. Eu estava mergulhada na dureza de um cotidiano que parecia amargamente eterno. Você, bonita, sorridente, questionadora e colorida. Eu, de roupas sempre velhas, sem brilho ou cor, procurando horizontes cada vez mais inalcançáveis.

Além de lhe pedir perdão, Rita, eu pediria um abraço. Você foi luz e vibração. Alegria e movimento. Força vital contra o desespero. Esperança contra uma velhice caduca, imoral e fétida.

Encante o céu, Rita Lee Jones. Cante e encante sim, cante muito, muito mais. Faça shows para os anjos e santos. Deixe as anjas e as santas nos primeiros bancos. Diga que você foi um brilho nos tempos proibidos, que incomodou os de alma cinza e barrenta, que levou beleza para todos os cantos.

Aliás, você não precisa dizer nada. Basta chegar com o seu violão, seus cabelos ruivos... e viver com eles.

E basta!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 09/05/2023
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