Eterna queda

A eterna queda ou o pulo pra sempre? Como se cai? Como se sabe se está caindo ou não? A única garantia que eu tenho, são as pessoas que me fazem rir, é do pombo que me acerta em cheio me ensinando verdade inegável, é a frase que escrevo no verso da foto, é quando você retorce a voz e eu quase consigo ver a curva que faz, é quando risco destacando, dilacerando, a frase:

"Amor não é prêmio"

que Clarice escreveu. É quando eu percebo que você me acordou o sonho, me mudou o tempo verbal. Tudo que eu escrevo, não é outra coisa agora se não fábula, futurologia. É quando o lampejo cruzou a cabeça e eu pensei, e ensaiei o beijo em sua pele, mas ri e lembrei logo "que absurdo" e tive que catar algo rápido pra seguir a conversa numa fraçãozinha. É quando pensei em te escrever uma carta e te enviar mesmo sendo brega. Pois mesmo sendo brega ainda é lindo, ainda é melhor que mensagem. Sabe Deus lá como eu ia achar teu endereço, sabe lá como eu ia explicar se caísse estranho.

sabe lá como eu ia ficar entre isso e aquilo.

O carteiro ia amontoar a endereçada pra você no meio daquelas todas, talvez assoprasse na cabeça o fato dele nunca ter entregue naquela casa antes, "ah lá o bobão", mas o caco-pensamento fosse embora da mesma forma como veio, e ele seguisse metódico o trabalho, sem se dar ao luxo do juízo.

Ele ia colocar na caixa de correios...não,não, talvez deixasse no chão em frente a sua porta, pois foi se abolindo as caixas de correio. E isso o deixasse um pouco com raiva, a morte das caixas de correio, que pra ele, significa o vulgarizar pouco a pouco do ofício. Não há mais lugar das palavras. "Hoje rez do chão, e amanhã?"

Amanhã você ia encontrar no meio da sua conta de luz uma carta com meu nome. Franzir o cenho em susto, raiva. Raiva, pois a única coisa realmente sua, irretocada, sagrada, sua morada, era agora segredo compartilhado.

ou então rir sozinha bem alto, enquanto fica pronto o descafeinado, enquanto organiza a lista pra feira da semana. "Carne...leite...arroz...biscoito integral" faz o ioga, arruma a casa, o coração batendo e desbatendo, os olhos saltando e cerrando. Talvez deixasse lá, repousada num balcão frio, numa mesa da sala, não por mal, nem grosseria, mas medo.

Medo do que tem dentro. Do que tem dentro de mim, de você, da carta, de encarar estrada enorme, de sentir que a vida vai ser, a partir daí, mais difícil de erguer sob os ombros. Afinal, quem é que faz uma coisa assim, do nada? Ia me mandar mensagem no WhatsApp perguntando

"O que é isso?"

Ou então só

"???"

Que eu ia ignorar pelo mesmo motivo que você não abriria a carta de pronto. Da eterna covardia gostosa. Uma coisa gelada e morna, amorfa. Uma garfada que escapa a comida e você tem que ir lá, furar, pegar de novo.

Ou então não, talvez rasgasse o envelope com um descuido quase esfomeado e voraz, o papel se deitasse no chão como pele recém morta, e você tomando cuidado de fechar a porta antes de sufocar o gemido. Ia se esforçar um pouco pra desentortar a minha letra que eu escrevi tremendo, de uma vez só, pra que fosse tortura única e eterna, e deliciosa, e de querer escrever até doer o meu pulso canhoto, e de preencher aquele papel de carta que eu tive que rodar as papelarias todas pra encontrar.

E aí você ia cair pra sempre, ou então sentir a dureza que não se freia, a placidez dos próprios pezinhos no piso, realidade simples como é do relógio que alerta o atraso. Relógio esse que tudo que eu faço, que venho fazendo, é no ofício de fugir. O tempo não é nadinha democrático. O tempo não tem pena dos apaixonados.

Você ia parar no meio porque, assim como eu penso, entende que coisa assim não se devora no todo.

E aí então, no caminho do caixa do mercado, enquanto lembra se falta algo nas compras, enquanto tenta encaixar o necessário pra viver, no orçamento do mês, enquanto " cartão fidelidade, moça?" aí você ia lembrar de correr pra casa pra matar o resto. Ia contar pras amigas, meio por ciminha, tentando não engasgar o riso doce, tentando não falar mais do que se entende, as amigas iam vibrar enquanto você ia jogar a opinião de um lado pro outro dentro de si, antes de me ver terminar a coisa da forma mais boba, súbita e ridícula, que tem

Num final mais ou menos assim.

"Com carinho, do amigo que te ama"