Memórias de bar 

     Sem porquês, decidiu escrever. Aliás, é um típico comportamento de quem não usa os sons além de formais sucessões de conformidade. Ele era assim. Posso-lhes assegurar que sempre o será. 
     Não fazia idéia da composição que o tomaria naquele silêncio inquietante pré-desjejum. Não se importava com faltas ou atrasos; falências ou falácias. Não seria sobre medicina ou artes-plásticas. Precisava desabafar com as letras. Era só. 
     Interrompido várias vezes por ataques de ausência, vez por outra pensava no ceticismo da violência contumaz. Nem cria ser possível erradicá-la, já que se violentava no cotidiano de suas frustrações. 
     Pensou no bar. O bar antigo... Aquele das mesas de pé de ferro e tampo de mármore.   
     O velho e bom bar de outrora, quando ‘saideiras’ eram iniciadas e depois perpetuadas de melodias saturnais. Extrairia daquele hemisfério o sumo essencial da vida. A alma dos bares ele encontrara. 
     Paredes mortas, de pintura esmaecida; luzes flácidas, que mal pareciam luar. No piso, tabuleiro de xadrez, disputava partidas imaginárias em jogos de alegria e dor. Dos banheiros – não tinha certeza – um entra e sai de criaturas fétidas, derradeiros sinais de alívio e angústia. 
     Não havia cardápio, antes ‘menu’; nem a “infame destruidora de idéias próprias”, a televisão, entretanto um rádio de válvula, ora silencioso, a minutar o féretro da saudosa boêmia. 
     Sempre quis ter ali. Sentia-se atraído por sua glória passadista e presente desmerecedor, todavia se detinha, com vergonha de julgarem-no único em sua adoração pelo tédio. 
     Pediria a boa coalhada das quinze horas ou o café fresco, passado no pano amarelado de experiências infindas. Reencontraria o garçom, português casto, quarenta anos de cá estar, para pedir-lhe a bagaceira d’além-mar. Seria mágico consumir azeitonas e tremoços ou sardinhas, sem remorso, autênticas manifestações lusitanas. Que viesse Manuel, Joaquim, José, desde que trouxesse, na bandeja, a pureza nacionalista de seu sotaque. 
     Já sabia sobre o que escrever. Adviera a tese de sua crônica. Antevira, passo a passo, a descrição minuciosa de suas sensações. Estava lá, no bar de ontem. No bar de suas memórias pueris. Pronto para elucidar sem os ecos das palavras, o que as letras prescrevem ao silêncio da eterna lembrança.