O HOMEM QUE SABIA DEMAIS

Pra ele não tinham segredos. Bastava um leve olhar, mesmo que fosse de canto de olho, para que desvendasse cada pensamento. Esta habilidade de capturar o que estava no ar, de traduzir nuances que poucos percebiam, começou há alguns anos. Podia dizer que era um bruxo ou que possuía uma sensibilidade rara, mas na verdade é que acabou desenvolvendo uma habilidade especial. Lembra bem como tudo começou. Aquele homem atarracado, calvo quase completo, vestindo paletó de risca de giz, quando entrou provocou um arrepio profundo, que foi e voltou da alma feito ioiô. Depois disso, veio a loira do 34, advogada parece. Em seguida, o médico que estava sempre com pressa, sempre cheirando a perfume barato. “Deve ter sido presente de alguma paciente”, pensou. O rapaz todo tatuado que fala sozinho também conta. E os demais: a gorda do 144 que usava minissaia e o dono do escritório de contabilidade com tique nervoso. Dizem que é viciado em crack, vai saber. O certo é que a vida o havia presenteado com este dom que, por vezes, parecia uma maldição. Ele passou 43 anos lá dentro, vendo estas pessoas chegarem e ficarem estancadas alguns minutos ao seu lado. Acabou aspirando não só o ar que saía de suas bocas, mas também seus mistérios. Todos eles. Alguns até dá pra comentar, outros é melhor nem chegar perto. Certo dia decidiu fazer algumas contas e somou todos os minutos que ficou com cada um deles, o resultado até assustou: 123.344!. Os anos foram chegando e corroendo as energias, arqueando seu corpo, deixando suas ideias mais lentas, mais rasantes, mais turvas, mais capengas. O gargalo da vida estava se afunilando cada vez mais, parece que o tempo ficava mais revolto, mais afoito, mais atônito, mais ansioso por seu voo derradeiro, seja lá o que isso for. Ele sabe que será enterrado junto com cada segredo capturado, que deverão lacrar na sua mente as tantas histórias laçadas à revelia dos seus protagonistas. Mas sabe que tudo valeu a pena. Se fosse voltar no tempo, não escolheria outro ganha-pão que não fosse o de ascensorista.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 31/05/2023
Reeditado em 31/05/2023
Código do texto: T7801721
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