O retrato da nonna tentou suicídio!

Penso que o roteirista celestial que escreve o script da minha vida tem senso de humor assaz peculiar. Invento personagens em crônicas, num plágio deslavado de mim mesma, porque receio contar o inusitado e parecer mentirosa. Hoje vou assumir o esdrúxulo na minha vida.

Gosto muito do hall de escadas da minha casa: coberto por domo transparente, é fechado ao fundo por tijolos de vidro. No vão, um lago com carpas, tartarugas e fonte. Na lateral, uma galeria de retratos da família. No patamar, um banco, onde penso na vida. Hoje acordei bem cedo e me sentei lá, admirando o mosaico formado por raios de sol que batiam na parede-galeria. De repente, o inusitado : um retrato – minha avó jovem com meu pai bebê no colo – desprendeu-se da parede, traçou uma curva no ar e despencou no laguinho.

A nonna foi-me muito importante. Adorava ouvir suas “pérolas”, sabedoria adquirida na vida árdua, iliterada, observadora. Viúva precoce, criou sozinha quatro filhos. Morreu quando eu tinha doze anos, mas continuou presente na minha vida, muito além da história e exemplo de vida. Eventualmente, visita-me nos sonhos. Dei seu nome à minha filha.

Estreitamos os laços há dez anos, quando entrei em coma após choque anestésico. Durante o coma, tive um sonho vívido com a nonna jovem. Coincidência ou não, a partir daí, quando passo por situações muito difíceis, sinto um toque de conforto nas mãos, como se outra mão se apusesse à minha. Em agosto, num momento de aflição, parei o carro e esperei, em vão, pelo toque, com as mãos sobre o volante. Para extravasar a frustração, passei um sermão na “Mão”, pela falta de sensibilidade ante minha dor... Por acaso, no mesmo dia, encontrei um motorista, agora idoso, que trabalhara para meu pai quando eu era menina. Ele contou casos divertidos da nonna. Interpretei o encontro casual como resposta à bronca da manhã.

Ela foi uma mulher admirável, justa, valente e muito, muito exagerada. Sua personalidade era propícia para o folclore que criou. Esta semana pensei nela várias vezes. Há pouco me ocorreu : a nonna fez aniversário junto com Belo Horizonte, em 12 de dezembro... Pela primeira vez, esqueci o aniversário dela.

Onde quer que esteja, ela continua exageradíssima. Viva, à menor contrariedade, ameaçava colocar a cabeça no forno. Morta, só porque esqueci o seu aniversário, atira-se no laguinho, expondo-se a ser comida pelos peixes... Convenientemente, bem na hora que estou por perto... Pôxa, nonna, que mãe desnaturada! Nem pensou no meu pai, bebê, afogado...

E você, leitor, que olhar de incredulidade é esse?

Nunca ouviu falar em realismo fantástico?

Ops, acho que acabei de assinar meu atestado de insanidade mental...

Em minha defesa, lembro Hamlet : “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, que desconfia a nossa vã filosofia”.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 16/12/2007
Reeditado em 17/12/2007
Código do texto: T780702
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