A Filosofia da Queda

“A Filosofia da Queda”

Degustação de vinhos na segunda feira. Cansado, mas animado. Com fome, mas com sede também. As taças tão lindas, as pessoas agradáveis. E eu ali. Bebendo. Falando. Discorrendo sobre minhas novas paixões. A filosofia em geral e a cultura chinesa em particular. Entre uma opinião e outra, a noite sem lua passa. Choveu. Depois de breve despedida, acelerei a minha chopper. Tinha pressa. Estava em busca dos meus escritos lógicos.

Bastaram apenas duzentos metros para eu ir ao chão. Subida. Devagar. Na reta. Ninguém me fechou. Nenhum buraco visível. Talvez o asfalto molhado, mas nada que os reflexos de um jogador de pólo-aquático não salvassem. Mas não foi assim. Vi-me no solo. Nem percebi o tombo. Deveria ter partido para escritos sobre a física ou quiçá sobre a metafísica. Foram em exatos quatorze segundos que percebi meu braço esquerdo fora do lugar. A mão em forma de colher e o estranho surgimento de dois cotovelos. O osso branquinho de fora. Uma dor excruciante.

Tentando ser o mais racional possível, percebi que ali Deus e a Natureza eram um só. O meu destino, a realidade da lesão. Telefonei com a mão direita. Ajudaram-me a levantar os duzentos e cinqüenta quilos da minha querida Nala. Toda moto tem seu próprio nome. Eu estoicamente sentei-me no meio fio aguardando o resgate. Ainda liguei para dois amigos motoqueiros, mas nada. Neste momento vi que a razão não deve dominar a emoção. Não chorei, mas pensei em todos que amo muito. Fui para o hospital.

O périplo foi rápido. O exame também. Luxação exposta total do cotovelo esquerdo com ruptura completa de todos os ligamentos e cápsula articular. Para completar; ruptura do músculo braquial. Diante da anestesia iminente, e conseqüente redução da luxação, somei dentro de mim os esboços do Ren, o Li, o Zhi, o Xin, Zhing e o Yi que são hábitos que tenazmente estou a cultivar.

Meu eu todo alerta ao acordar. Difícil ter altruísmo quando se arrebenta, mas pensei tanto nas minhas pacientes... Gentil com todos que me operaram; enfermeiras, médicos plantonistas, a faxineira. Às vezes saber exatamente o que lhe ocorreu e as devidas conseqüências, não é muito bom. Mas devo permanecer íntegro, não é isso que irá me mudar, eu acredito. Fiel a mim mesmo e aos meus preceitos. Manter a honradez, mesmo que ferido e chateado. Chateado é pouco, puto. Putíssimo.

Os médicos em geral falam pouco, explicam com termos técnicos. Sendo eu um deles, a coisa ficou mais embolada ainda. Fiquei de dieta zero. O que significa que seria submetido a uma nova cirurgia. Montado num touro eu estava. Agora minha barba branca resigna-me a ouvir o médico especialista em cotovelo. Ele quer me operar. Concordo e entreguei-me sem pestanejar. Relembro o quanto é cansativo discutir com um paciente que nada sabe, e que ainda escuta de leigos, condutas totalmente diversas da realidade. O meu doutor é bom.

A anestesia começa com um bloqueio braquial e depois passa para geral. São três horas de duração. Acordo com gesso. Meus livros sobre o cerrado me aguardam. E o Tao-Te Ching também. Surpreendentemente recebo uma coleção de ótimas leituras. A felicidade, desesperadamente, do André Compte-Sponville e muita filosofia. E beijinhos curativos no meu braço esbagaçado. Eu vou melhorar. Sem meu membro de ação, meu caminho fica mais simples e vejo com clareza a vida.

Caminhadas matinais com o cão. Vento frio das manhãs de fevereiro. Céu azul. Reli escritos morais e políticos e vi os meus retóricos e poéticos. Digitar somente com a mão oposta é um exercício de grande valia. Deu-me humildade e ajuda a perseverar. E então começei uma observação fiel da Natureza. O ar é diferente em horários diversos. Assim como também o é em lugares outros da cidade. Passeei em exposições. Revi meu querido Picasso. Falei em francês. Há um grande rigor no método de aprendizagem. Também fui à de cultura chinesa. Primeiro comecei a definir o objeto, depois suas soluções históricas, advém as dúvidas e trouxe minha própria solução e depois rebati as sentenças contrárias.

Melhoro a olhos vistos. Cinema diário. Como é gostoso chegar à sala imensa vazia e sentar-me com minha almofadinha de lado. E sempre tenho apoio. A lei suprema da realidade única é a necessidade. Cada corpo tem uma alma e cada alma tem um corpo. Melhorando meu corpo a minha alma cresce, como Billie Holiday cantando Body and Soul. Aliás, aproximo-me ainda mais das grandes divas do jazz e até de um velho disco do Chico, em que ele canta “Fantasia”; “vem meu menino vadio, vem sem mentir pra você”. Ah, as músicas sempre pontearam minha vida.

São dezoito dias de gesso, fletindo um braço que teima em não responder. Minha bolinha terapêutica com um sorriso está presente nos passeios todos. Até arrisquei ir ao Memorial do Cerrado. Que beleza de tarde! Cada lugar uma surpresa! Como a vida é curta e as pessoas não sabem curti-la. Há homens que perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente nem no futuro. Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido... Quanta verdade nesta frase, eu ainda que sem meu completo restabelecimento, sinto-me mais vivo do que nunca neste dia!

A fisioterapia inicia. Dentro das longas noites e quem choro calado e só, coloco meu braço estendido e meço o ângulo que falta. Falta muito. Não falto um só dia na academia. Meu professor é dedicado. São faixas, posições e movimentos variados. Muito alongamento. E dor. Meu jovem-velho mestre acha que sou um animal mítico, talvez um dragão, ou uma fênix. Não sou nada disso. Só um menino esforçado. São dez mil coisas que desejo fazer e posso apenas amar. Amar o que me rodeia e os gestos de carinho que recebo. Já acho muito.

As minhas pernas não foram afetadas, isso é muito esquisito. Se a atrofia em cima é marcante, lá embaixo parece que nada ocorreu. Muito menos nos meus instintos. As virtudes estão aí. Eu consigo a felicidade mediante a virtude. Cada dia mais forte e pleno. O exercício físico é um ato racional e a paixão continua florescendo, não é destruída e nem aniquilada. Não estou dividido. E isso é ótimo.

Pela primeira vez reencontro um dos meus grandes amores. A água. Se antes o meu simples aquecimento era nadar quatrocentos metros, esta mesma distância é o limite que alcanço com muita dor e sensação de que nunca mais meu braço irá se esticar. Tento não chorar na borda da piscina salgada. Ainda bem que este gosto é também o das lágrimas. Penso em Deus e na Natureza. Deus é eterno e infinito. A Natureza é por si só a expressão máxima dele e da beleza divina. E eu? Arremedo de gente que conhece pouco apenas o espírito e a matéria. Por isso, nado vinte cinco metros borboleta. E por consegui-lo, saio realizado da água.

Vou retornar a atender as pacientes. Muitas me ligaram, preocupadas com a minha saúde e bem-estar. Algumas poucas perguntaram o que elas fariam sem mim, e como eu poderia tê-las deixado assim. E até uma, duas semanas depois que retornei ao trabalho, duvidou da minha capacidade de atender e operá-la. Bem, o homem de bem exige tudo de si próprio; o homem medíocre espera tudo dos outros. Eu apenas faço o que posso.

Trabalhando, nadando, fisioterapia, musculação e a vida seguindo. Ninguém vê os diários embates morais em que me deparo. Ninguém nota a paixão e os destinos que tomo e escolho a cada dia. Só vêem as cicatrizes do meu braço. Na moto, trinta raios convergem para o meio de uma roda. Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil. Molda-se o barro para fazer um vaso; e é o espaço dentro dele que o torna útil. Fazem-se portas e janelas para um quarto; são os buracos que o tornam útil. Por isso, a vantagem do que está lá, assenta exclusivamente na utilidade do que lá não está.

Fiz a última consulta. Recebi alta. Trabalhei muito este dia. Só pude pegar a moto depois de jantar. Paramentei-me todo. Até perfume. E saí. Fora da minha cidade. Bem acompanhado, claro. Queria nadar, não consegui. Queira ver o mundo pelo lado de fora. Eu sempre vejo. Queria o que todos querem, amar e ser amado. E fui.

Aritóteles diria que o homem prudente não diz tudo quanto pensa, mas pensa tudo quanto diz. Espinoza citaria que o desejo é a própria essência do homem. Confúcio certamente me lembraria que a maior glória não é ficar de pé, mas levantar-se cada vez que se cai. E Lao Tsé finalizaria declarando que domina-se o mundo deixando as coisas seguirem o seu curso e não interferindo.

Mas eu, que após todo este relato de queda e filosofia da mesma, em que eu bebi, dirigi na noite chuvosa e errei. É verdade. Concluo que quanto mais penso, maior o meu desejo cresce e não adianta nada derrubarem-me. Pois levantarei-me sempre e vendo que o mundo não me pertence e sim eu a ele, portanto; prossigo andando de moto, nadando, operando, amando. E agora; mais do nunca: filosofando

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 17/12/2007
Código do texto: T781568
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