Sarau de rosca

Os sapatos em acabamento de verniz reluzente estilo cromo alemão já estavam separados na prateleira. A calça social e a camisa branca em microfibra poliéster haviam sido passadas com esmero pela esposa e guardadas no closet, assim como o requintado terno preto de corte italiano utilizado em apenas duas ocasiões. O destaque maior se concentrava na elegância da gravata original Prada, um mimo singular enviado por um familiar residente em Roma. Até a fivela dourada da cinta recebeu um polimento diferenciado e a visita obrigatória ao salão do barbeiro fora agendada previamente. A ansiedade quase incontida se justificava, uma vez que o convite chegara de forma repentina e não obstante a intenção primeira em sair pela tangente, os argumentos superlativos da interlocutora persuasiva foram eficientes e determinaram a mudança de perspectiva. Mesmo porque o Sarau Cultural seria democrático, com recitação de poesias, apresentação musical e bate-papo com escritores regionais. Uma oportunidade e tanto para estabelecer novos contatos e azeitar adequadamente do veio literário.

Enfim, o grande dia se aproximava. O aviso sonoro típico de mensagem chegando pelo aplicativo do aparelho celular foi imediatamente conferido. A decepção proporcional à ansiedade contida por semanas foi como balde de água fria, pelo adiamento inesperado do evento. Por motivos perfeitamente compreensíveis obviamente, uma vez que haveria conflitos com as atividades da instituição de ensino superior, assoberbada com provas e avaliações diversas. Perfeito! Justificativas e escusas prontamente aceitas, evento remarcado para ocasião oportuna, as expectativas naturalmente se voltaram ao calendário afixado na parede da sala de estar e que se tornara um companheiro inseparável. Agora os momentos de descanso eram também de introspecção, a matutar uma maneira minimamente didática de discorrer sobre a própria descoberta como manipulador das palavras, materializando os diferentes sentimentos presentes no ser humano. Pesava ainda algum tipo de acanhamento pelos diminutos registros do currículo, sem a áurea de uma desejável formação acadêmica ante a relevância do acontecimento. Receio esse logo superado pela hábil assessoria da “senhora educadora”, pseudônimo conferido à representante da entidade educacional alçada a condição de cicerone, de fato e de direito.

Agenda reprogramada, detalhes revisados e rememorados enésimas vezes, eis que o esperado momento se aproximava. E como ocasionalmente o raio resolve cair por mais de uma vez em um mesmo lugar, bingo: novo adiamento, por razões semelhantes à anterior. E mais uma vez. E mais uma. “Uai sô, mais num é que o negócio tá de rosca?”, diria o típico habitante do interior mineiro. Pois é, pois é... Mas é do tipo rosca soberba, daquela facilmente aparafusável, tanto que finalmente a “profecia” se cumpriu. Indumentária nos trinques, barba bem feita, colônia importada no sovaco, sorriso de aflição nos lábios, aperto na boca do estômago, uma derradeira ajeitada nos fiapos remanescentes da careca e a carona na porta. Pacote completo. Finalmente o irresoluto Sarau foi um sucesso total em criatividade, interação cultural e público presente. Pois que venha o próximo!