AMADURECI

Amadureci.

Já tenho longos papos com meu cão, sorrio para os cactos da janela e tomo café com gosto de infância. Já borrifo essência capim-limão pela casa, acendo velas de eucalipto no banho cantarolando mentalmente “La Vie En Rose”; entreabro cortinas de sonho...

Amadureci.

Já tomo chá de camomila à noite, remédios para dormir, cremes para rejuvenescer e livros para enternecer...

Já releio Veríssimo, tenho colóquios com ele, caminho com sua “ ingênua Clarissa” dos anos 30 na margem nublada do Rio Guaíba, até porque tenho muito da boa fé dos seus personagens, qualidade rara e cada vez menos disponível para o mundo de hoje, por isso amadureci.

Já ouço novas cantoras francesas, além de Piaf, e faço de conta que entendo este idioma lírico; vejo fotos de uma Paris que não conheço, mas que idealizei aos 12 anos. Relembro Proust com um carinho de amigo íntimo. Guardo trechos dos seus livros, almejo provar suas “Madeleines” ou mesmo encontrar o caminho fictício para “Guermantes.” Amadureci.

Já tenho uma prateleira exclusiva para meus ursos de pelúcia, os quais ganhei apenas na maturidade, um baú para a Olivetti antiga, uma boneca de pano que só falta falar e um dinossauro que canta e dança apesar de ter sido abandonado na loja.

Já namoro meus vinis anos 80, que ficaram embolorando no quartinho escuro, e planejo voltar a ouvi-los na Vitrola que não já tenho mais. Amadureci.

E já não escrevo tanto. Parei de me superestimar. Coloquei-me na vala comum. Ainda bem. O obsoleto é que é a minha verdade. Amadureci.

Já vivo os chicles da paz, mas piso de mansinho nessa fugaz felicidade.

Angela Gasparetto
Enviado por Angela Gasparetto em 17/06/2023
Reeditado em 17/06/2023
Código do texto: T7816036
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