RECANTOS DO TEMPO

 

Numa certa manhã de domingo, muito distante no tempo, saímos -meu pai e eu - para comprar laranjas.

 

O destino, uma colônia de lavradores a pouca distância de onde morávamos.

 

Ainda que isso tenha ocorrido em priscas eras, lembro-me nitidamente de alguns detalhes que cercaram aquêle dia.

 

Chegamos:

 

Uma porteira entre os cedros abrindo-se para um gramado muito verde riscado de paralelas de rodas de carroças .

 

Cães aparentemente furiosos vindo ao nosso encontro.Depois, abrandados, seguindo-nos feito batedores como que escoltando a charrete que nos conduzia.

 

Saudações, e o olhar desconfiado da moradora daquela casa com paredes descoradas,ainda que das janelas emanasse um vermelho intenso.

 

Um arbusto florido ao redor da cerca aramada,e seu Jango, meu pai, servindo-me uma laranja sumarenta descascada à canivete.

 

A manhã era morna e bocejava preguiçosa sob a fina organza da neblina.

 

A sinfonia daquele começo de dia ficava por conta dos mugidos alongados pelo potreiro,uma e outra cantiga de galo e um radio sintonizado numa emissôra qualquer.

 

[ Missa de domingo ]

 

Alguém gritara do interior da casa.

 

-Minha Nossa ! Desandou a maionese.

 

O assombro provocou risos, inclusive na desconfiada dona da propriedade.

 

Impiedoso ,o tempo, este senhor da razão ,fez de mim um sexagenário – e saudosista –

 

Vez e outra ocorre-me cruzar diante daquela casa ,agora "caídaça" , e ela espreita -me com o mesmo par de olhos vermelhos daquelas janelas .O arbusto que, na teimosia, abre-se colorido em meados de abril, age na cumplicidade com as paredes sem pintura, insinuando-se - a casa e ele - profundos conhecedores de minhas lembranças.

Então, rendo-me às fragilidades e me dou conta das incontáveis " laranjas "que a existencia me fez descascar ao longo do tempo e as percebo quase tôdas um tanto amargas, ausentes...

 

[A vida é permeada de momentos insípidos e sabe o jeito certo de nos privar dos "descascadores de laranjas e seus canivetes"]

 

Momentos existem em que tudo o que desejamos é o retorno de antigos afetos, a mão que nos amparava, as palavras que nos decretavam a garantia de ser feliz.

 

Então,ponho-me a revirar as canastras da vida na busca inútil de algo tão sumarento quanto o fruto que me fora servido naquela manhã distante, de céus que se abriam mansamente sobre as colinas ainda agasalhadas.

 

Um sabiá gorjeia em meus quintais interiores e olhos neblinados, teimam em disfarçar que isso tudo não passa de...

 

Pura ilusão! Saudades,nostalgia...

 

Um ligeiro e disfarçado cisco no olho.

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 20/06/2023
Código do texto: T7817876
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