Entre sonhos de creme e sonatas de Chopin

Debruço-me sobre a vida aos meus quase sessenta anos como quem assistiu desde a carroça à tração animal (sim, em cidades do interior já vi esse transporte e não faz tanto tempo) até o despontar das viagens turísticas interplanetárias que não tardam a estar disponíveis aos mais abonados apenas por lazer. A ciência obviamente avança célere e absolutamente não julgo os magnatas excêntricos, já que têm tantos recursos a seu dispor que carecem de novos objetos do desejo, enfadados que se encontram no topo dessa pirâmide que há de render momentos solitários e/ou vazios (que só confessam ao travesseiro porque devem manter a pose). Se lhes advêm uma doença séria, adeus viola, não é verdade? Melhor aproveitar o tempo antes que a areia da ampulheta se esvaia.

Sim, encontro-me num momento nostálgico em que sinto falta até do que não vivi, mas ouvi os mais antigos relatarem um tempo de liberdade próxima à plenitude em que não havia essa pressa extremada e os trabalhadores honestos (ou quase isso) não mantinham seus prédios e casas cercadas e gradeadas pois não havia temor de que pessoas sem princípios ou caráter as invadissem para subtrair-lhes os bens, estes sim merecedores de uma longa temporada atrás das grades. Mas, pensando bem, há pessoas tão insidiosas e vis que burlam a lei, distorcem-na a seu favor encontrando brechas e ainda assim vivem libertas por causa dessas lacunas ou por corrupção mesmo para usar todos os efes e erres. E por falar em bens, melhor nem me estender nesse pormenor, pois existem bens arraigados que nem a fórceps podem ser extraídos como o caráter e a cultura de uma pessoa ou povo (e isso irrita demais a uns e outros).

Mas eu testemunhei uma época, bem no finalzinho dela, (década de 1960) de crianças brincando juntas travessas e felizes no meio da rua onde quase não passava automóvel (como havia vilas na zona norte do Rio!) aguardando ansiosamente a hora do padeiro passar no seu triciclo buzinando e trazendo num grande cesto de vime uma variedade enorme de pães fresquinhos salgados e doces (eu gostava do pão com formato de jacaré que tinha perninhas e tudo), além dos sonhos… Ah, que me perdoem a rima pobre, mas os sonhos faziam mesmo a gente suspirar e sonhar. Sonhávamos sem internet, interagíamos face a face inocentes e ignorantes antes da globalização que hoje permite que a ocorrência de um tremor com fatalidades na Indonésia tenha repercussão imediata aqui. Quase sempre recebemos o noticiário tenebroso e muito raramente alguém se abala em escrever sobre o início da floração das tulipas na Holanda ou sobre um animal raro ameaçado que foi salvo da completa extinção por um milagre da natureza, isso só a título de exemplo. Por esse e outros motivos a arte (sob todas as suas vertentes) precisa se multiplicar caudalosa como fazem os coelhos, louca e desvairadamente para que nunca morram as ilusões e esperanças que todos acalentamos (mesmo sem assumir como aquela pessoa triste que atesta nada mais ter a esperar do tempo que lhe resta). Uma luz tênue e trêmula que seja tem de vingar para virar um fogaréu ou mesmo seguir frágil, mas sem fenecer.

Veja e repare bem que não estou advogando a positividade tóxica que irrita tanto até causar um tipo de urticária emocional muito menos a religião (se bem que a origem da palavra latina religare não deve ser completamente aleatória, creio eu). Falo simplesmente que há possibilidade, com boa vontade, de se manter um dos pés plantados no chão, no lado prático da vida que garante nossa sobrevivência física, porém o outro pé pode e deve estar livre para pisar em terrenos que remetam a momentos de beleza, leveza, música, teatro, interesse por outras culturas, pintura, escultura, cinema, auxílio aos outros seres humanos e aos demais seres viventes. Um saudoso professor de tradução com quem tive a honra de conviver, Daniel Brilhante de Brito, ensinou-me (além dos primeiros passos do ofício de traduzir) que não havia dores da alma humana (e do corpo também) que fossem impenetráveis por ao menos uma das composições de Frédéric Chopin, portanto ele vivia “receitando” sonatas, noturnos, prelúdios e baladas a quem se interessasse. Cheguei a experimentar, confesso, com bom resultado. Contudo, prefiro Bach e Erik Satie, mas basta uma gota de amor e fé (não precisa ser da espécie religiosa) para a situação adversa se modificar mesmo que lentamente até o consolo chegar. Padrão vibratório existe, minha gente. Vide inúmeros estudos científicos espalhados pelo mundo segundo os quais aquele paciente que tem apego a um amor qualquer ou algo que o motive a seguir adiante tem muito maior probabilidade de ultrapassar seu obstáculo do que aquele que depõe as armas antes da batalha terminar. Só fazendo o teste de São Tomé e ver para crer.