MÚSICA NO TEMPO

Visitando um familiar, ele fez questão de me mostrar duas relíquias que acabara de herdar, um antigo toca-discos conjugado com um aparelho de rádio, ambos embutidos num móvel de madeira, cujo verniz acusava que há muito fora confeccionado, e um relógio de parede com pêndulo, emoldurado num belíssimo jacarandá. Com entusiasmado, revelou que tanto o aparelho sonoro, quanto o relógio, tinham seus mecanismos funcionando perfeitamente.

Subiu a tampa da peça e retirou de dentro de um compartimento vários exemplares de clássicos de uma época cujos discos eram confeccionados de goma-laca, também conhecida como disco de 78 rotações, bem antes de serem substituídos pelos discos de vinil. Fez questão de ligar o aparelho, que exigiu aguardar alguns momentos até que as válvulas fossem aquecidas, colocou um disco sobre o prato. Deixou-me só na sala ouvindo o som.

Fecho os olhos e embarco numa viagem através do tempo. Imagino um homem entrando na sala, bem alinhado trajando um terno cinza, provalmente um elegante corte inglês, um chapéu fedora e sapatos pretos lustrados com esmero. Tira o chapéu e o pendura num mancebo à sua frente, de uma cômoda à esquerda do móvel sonoro, abre uma gaveta e retira uma caixa contendo um cachimbo e seus acessórios. Ainda em pé, liga o som, escolhe atentamente alguns discos e lentamente os coloca no prato, senta-se na poltrona e, enquanto pita, olha para o relógio na parede, leva uma das mãos ao bolso da calça e de lá puxa uma longa corrente onde um relógio está pendurado, confere as horas. Posteriormente o guarda no mesmo bolso de onde o tirara.

Enquanto a minha mente observa o elegante cidadão e a cena descrita, tento adivinhar que músicas ele estaria ouvindo e, divagando, faço uma viagem nos ritmos possíveis executados à época. Poderia ser um tango de Gardel, um bolero de Ravel, a orquestra de Glen Miller ou mesmo um jovial Frank Sinatra, quem sabe. Ainda, um vozeirão de Vicente Celestino, talvez o carinhoso Pixinguinha, Nelson Gonçalves e Chico Alves. Também poderia ser as lindas vozes de Maysa, Ângela Maria, Emilinha Borba, a melancolia de Dalva de Oliveira, a irreverência de Carmem Miranda e tantas outras, ou até mesmo uma canção de Noel.

Ouço músicas ao fundo, observo que a cada badalada do pêndulo o homem olha para o relógio na parede e, como fizera por várias vezes, leva uma das mãos ao bolso da calça e de lá puxa a longa corrente, na qual o relógio está pendurado, confere as horas como se estivesse se certificando que aquela era de fato a hora na qual estava vivendo.

Subitamente, desembarco da viagem e fico a pensar que as músicas tocadas naquele antigo aparelho ainda permanecem repercutindo pelo ar, vagando pelo infinito do universo. O relógio na parede no seu “tic-tac” incessante acompanhou muitas gerações e foi implacável ao marcar o tempo de cada uma das vidas que estiveram à sua frente e, que o som do pêndulo é um aviso de que o tempo permanece inabalável, quem passa somos nós.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 30/06/2023
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