Chiquinho do Pilar
 

           Quando os ciganos eram mais nômades do que os de hoje, observei, desde os idos de 1950, que eles demoravam pouco aonde chegavam, como caminhar fosse coisa dos seus destinos. Assim, mostrava-se um povo sem casa, sem terreno ou lugar para plantar. O lugar onde morar se definia para poucos dias. Chegavam com alguns troços para cozinhar, dormir e se vestir. E logo se iam para uma outra cidade, por escolha dos chefes dos grupos aonde instalarem seus ranchos, constituídos de tendas e barracas de lona, com complementações de coloridos tecidos. Nessas barracas, ciganas praticavam o seu ofício de ler a mão, geralmente dos endinheirados, procurando saber como seria o seu futuro no amor, nos negócios ou na política. Esse comportamento de errantes, sem habitação ou lugar fixo para morar, muito determinava costumes, transmitidos pela prática e pela oralidade às próximas gerações, participantes dessas intermináveis peregrinações. Essa história vem de longe, com consequências nas suas conceituações de família e de propriedade. Por que não dividir o uso das panelas, se a alimentação lhes seria comum? Coisas que espantavam os conservadores proprietários de terra, cujas fazendas se encravavam nas próximas que iam adquirindo, mudando apenas a fixação das cercas. Enquanto aos ciganos, ter ou possuir deveria ser o suficiente, inclusive para não haver muito a carregar nas suas sucessivas mudanças.
          Já Francisco Cavalcanti de Mello, nascido em Aliança, zona da cana-de-açúcar em Pernambuco, caminhou pelos canaviais, até parar nos plantios de cana pilarense, para fixar-se, com afinco, alicerçando moradia, fazendo uma linda e inteligente família, cujos retratos nos poderá mostrar sua filha Magdala; também suas amizades em Pilar, dentre elas, quem sabe, poderá se achar meu pai, Inácio Ramos Cavalcanti, seu amigo. Esse povo tinha casa, lojas, e  poderia possuir terra, onde teria tempo para a germinação das sementes, o crescimento das plantas e os seus frutos. Enfim, tudo que existia naquele povoado pertencia àqueles que nele habitavam, isso tornando o lugar relativo à identificação das pessoas, como a de Chiquinho, que, vindo aos dezessete anos, para ali morar, lá viveu, cresceu, trabalhou e morreu, onde jaz para dizer que de Pilar nunca saiu. Essa intensidade de amor à terra substituiu o seu nome, de Francisco para o conhecido Chiquinho do Pilar: o cidadão passou a pertencer à cidade...
          Ocorre o inverso, quando a cidade passa a ter o nome do cidadão. Exemplo admirável conheci, em 2022, durante o III São João na Rede, realizado do Litoral ao Sertão. Contaram-me que João de Moura, em suas terras sertanejas, tinha um poço, de onde todos com sede bebiam ou carregavam ancoretas d’água, nos espinhaços dos burros enfileirados. Tal local, conhecido por poço de José de Moura, deu à cidade o nome de Poço de José de Moura, e que, nascida da bondade, exemplo à Paraíba, como município, onde nunca se praticara, até aquela data,  homicídio, tampouco feminicídio.
          A escolha de nomes, entre os ciganos, também se guia pelo sentimento de gratidão. Antônio Mariz doou terras da família aos ciganos para instalarem, nos arredores de Sousa, até hoje, seus cinco ranchos, denominados: Pedro Maia - Chefe Francisco Lacerda; Raimundo de Doca - Chefe Nestor; Otávio Maia - Chefe Cícero Romão; Vicente Vidal de Negreiros - Chefe Francisco Maia; e Manoel Valério Correia - Chefe João Viana. Há muitas crianças, jovens e adultos chamados Antonio Mariz, e por lá conheci uma menina com o nome da ativista cultural Mariá Marques. Tais nomes não atentam a identificação da família, formalidade documental a que ciganos são indiferentes. Se, segundo Cervantes, a ingratidão é o pecado que mais ofende a Deus, a gratidão dos ciganos muito Lhe agrada...