Perdendo e levando

– Assim ele vai ficar inelegível.

– Mas por quê?

– Tá furando as regras eleitorais...

– Mas...

– Mas?...

– O homem é do exército.

– Com aquela patente bichada?

– Mas sempre é militar.

– Cheio de punições...

– Então você não respeita?

– Respeito todo mundo que segue as regras.

Corria a década de 80 do século passado. Época de movimentação pelas eleições presidenciais diretas, e os amigos do citado diálogo discutiam algo certamente extraordinário. A comunidade do Morro Alto, querendo sair na frente da emenda constitucional que previa eleições presidenciais diretas, resolvera eleger, pelo voto direto, o presidente da associação de moradores, aquele que os representaria na Prefeitura e na Câmara Municipal.

Foi um episódio inusitado para a época, anunciado como uma prévia dos novos tempos que o país viveria. Normalmente, os diretores da entidade eram escolhidos por aclamação em chapa única, recebendo o apoio dos presentes que ora referendavam nomes antigos, ora, pelo esgotamento daqueles, acabavam por escolher outros, que iriam de pires na mão mendigar melhorias ao poder municipal.

Muitos queriam que Juca da Venda fosse a nova liderança, mas Juca tinha sonhos, sonhos mais altos e almejava, no futuro, uma cadeira de representante no legislativo. A indicação o encheu de orgulho, mas ele viu na escolha uma oportunidade de testar se era mesmo popular. Só aceitaria representar a comunidade se fosse aclamado em votação, com urna, campanha, fiscais eleitorais. E aquela eleição tinha mesmo o dedo do Juca, que exigia para concorrer toda aquela parafernália de um pleito de verdade. E isso agitou a comunidade e foi objeto de matéria na imprensa e de entrevista na tevê local, com Juca da Venda e Zeca Maieiro falando dos seus planos de melhorar a praça pública, o posto de saúde e tanta coisa que toda a gente precisava. Zeca disse tão bem de Juca, que parecia seu eleitor.

A bem da verdade, diga-se que Zeca Maieiro, já mais velho e aposentado, passava os dias se divertindo com os amigos na raia de malhas, onde a maior alegria era mesmo jogar toquinhos e toquinhos ao chão e marcar pontos. Aceitou concorrer mais pra compor o cenário inusitado que se queria apresentar. Zeca não gostava nada de enfrentamento. Ainda mais com o Juca da Venda, que tinha serviço prestado, tinha a patente de cabo aposentado – punido por indisciplina, ainda que pequena, dizia-se – e colocava mesmo a mão na massa deixando a venda pra ajudar gentes, aumentar a igreja, fazer festas juninas e bater no peito com muito orgulho, propagando aos quatro cantos que sem ele o lugarejo não ia pra frente, não conseguiria nada. Além disso, o Juca queria um adversário pra massacrar e saiu dizendo que tinha pena do Zeca naquela briga na urna.

– É capaz de nem a mulher, a filha e o filho votarem nele. Será que o Zeca vota nele? –. E ria-se à larga.

Foi dada a largada, e a campanha começou com o Juca não perdendo oportunidade de tripudiar sobre o adversário. Tanto fez que Zeca começou a ficar incomodado com as gozações e resolveu partir para a luta, e conversa aqui, conversa ali já davam conta de que a disputa poderia ser apertada. Juca continuava no ataque, superestimando a fraqueza do oponente.

É preciso dizer que a eleição tinha regras. Havia uma comissão – liderada pelo sapateiro Abdias –, a qual escreveu as regras mínimas do embate. Uma delas era que os candidatos não podiam procurar eleitores aos domingos – essa cláusula foi feita à feição do Juca, que passava o dia inteiro do descanso cristão na venda, conquistando grana e eleitores. Zeca Maieiro já tinha notado o ardil, mas não se preocupou. Pra ele, o problema era que as gozações do Juca tinham uma ressonância que o deixavam muito humilhado.

O Juca, a certa altura, ouvindo comentários sobre a força do fraco, fazia descontos na venda, deixava por lá a mulher e o filho no comando e na propaganda, e ia de casa em casa aos domingos, quando era mais fácil encontrar os eleitores.

Mandando às favas o regulamento, que virou letra morta, Zeca resolveu fazer passeios dominicais pelas ruas da comunidade. Falava das virtudes do Juca, do que ele era capaz. Repetiu o que dissera pra imprensa:

– Se o Juca ganhar, eu também venci...

Mas pediu um ou outro voto da família, de algum indeciso... Só pra ele não perder de muito e ter de passar por aquela humilhação com os seus, com a turma da malha, com a vida, da qual pouco pedia senão a alegria da convivência naquela comunidade. Um homem de honra, que sempre vivera ali, que não fizera uma grande obra que não fosse ter amigos, não merecia perder de balaiada.

Sobreveio o grande dia das diretas. A maioria a pé, outros de carro, chegavam à boca da urna, majestosa perto de uma gruta de santo Antônio, o protetor do bairro. A campanha ferrenha e vistosa do Juca abafava uma ou outra manifestação a favor de Zeca. Coitado!, pensou sua mulher, já antevendo a tragédia...

Abriu-se a urna, fez-se a contagem, devidamente fiscalizada, e Zeca venceu as eleições por minguados quatro votos. Não quis a nobre função. Renunciou em favor de Juca, que assumiu com cara de perdedor.