TELEVISÃO

Médico, pai de família, chega cansado de um plantão no hospital público.

Após comer, senta na sala com mulher e filha, de oito anos. Liga a TV.

Primeiro canal que aparece:

“Take all the clothes off, girl...” – mulheres seminuas se mostram ao som de rap americano.

Automaticamente ele muda o canal:

“...é flagrada na praia no maior amasso com novo affair!! Olha só...”

Murmura algo, enquanto muda novamente:

“ Vossa Excelência é um mentiroso!” – paralelamente alguém ao fundo diz “Pela ordem, senhor presidente”.

Sempre tomando cuidado com o que sua filha iria ver, balança levemente a cabeça, enquanto faz certo som com a boca, uma mistura de sarro e raiva, e muda de canal:

“Segundo pesquisas, a taxa de pobreza aumentou consideravelmente...”

Suspira, eleva um pouco o rosto, como se estivesse encarando a TV, e muda de novo:

“Mais pessoas morrem em briga entre torcidas. Imagens exclusivas.”

Já com as sobrancelhas denunciando angústia, balança a cabeça e passa mais uma vez:

“Policiais são acusados de torturar um jovem de 15 anos até a morte.”

Olha para cima. Pronuncia algum palavrão baixinho. Abaixa o rosto fazendo meia-lua pela esquerda até olhar para o chão. Apóia a cabeça no braço esquerdo. Com os olhos brilhando, ergue o rosto a altura normal, suspira bem forte e muda novamente:

“Família quase inteira morre em um grande acidente na Aveni...”

Ele diz:

-Mas será possível que não passa nada que preste, rapaz?

Com todo o semblante mostrando indignação, tenta outra vez:

“Prefeitura decide diminuir o salário dos médicos...”

Fecha os olhos. A garganta trava. Fica mordendo os lábios e balançando os pés. Engole seco e respira fundo. Abre os olhos. Larga o controle remoto no sofá, murmura algo parecido com “é brincadeira, viu...” e sai pelo corredor, tentando não transparecer para a filha a raiva quase explosiva que está sentindo.

A filha pega o controle remoto.

Passa alguns canais, até que pára em um. Chama:

-Papai, volta!

O pai, andando bem devagar, volta até a sala.

Esperando o que a filha iria dizer, fitou-a com olhar triste e semblante indiferente.

A filha olha o pai com olhar inocente e solidário:

-Achei, papai. – anuncia enquanto sorri docemente.

Vira-se e aponta para a TV.

O pai segue, sem animação, o olhar da filha. Ao ver o que ela apontava tão inocentemente, foi tomado por crises existenciais. Questionou-se sobre a filha, sua criação, a família. Questionou-se sobre o trabalho, a vida, o mundo. Com poucos segundos olhando, lágrimas escorreram de seus olhos. Era intervalo comercial.

Cláudio Theron
Enviado por Cláudio Theron em 20/12/2007
Reeditado em 20/12/2007
Código do texto: T785673
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