O China e o talher

Assim era conhecido na redondeza. Ninguém sabia seu nome. Tudo começou com seu avô, um chinês autêntico, que trabalhava como cozinheiro em um navio cargueiro que transportava pessoas de baixa renda em troca de serviços.

Os serviços mais procurados eram os de auxiliar de cozinha, arrumadeira, faxineira e roupeiro. Quem queria fazer uma viagem internacional e não tinha dinheiro para pagar por um cruzeiro, viajava nesse cargueiro sem pagar.

O cozinheiro, avô do China, numa dessas noites tropicais, de céu estrelado e lua cheia, enamorou-se da arrumadeira, uma pernambucana negra e sonhadora, a caminho de Portugal. O parto do menino deu-se no Porto.

O menino, um mestiço, não falava língua alguma até os seis anos, quando a mãe decidiu pôr um fim à sua vida aventureira e fixar-se em Fortaleza. O menino cresceu, aprendeu português com leve sotaque e gostava de cozinhar.

Esse menino sabia de tudo um pouco, mas gostava de mexer nas panelas, ajudando sua mãe em uma pousada. O pai, o chinês, aparecia de seis em seis meses para visitá-lo e dar-lhe um dinheiro.

Ele teve um filho com uma das auxiliares da sua mãe, uma descendente de indígenas. Esse filho era indecifrável: tinha sangue chinês, negro e indígena. Tinha cor de mulato, lábios de branco, cabelos encaracolados e olhos puxados.

China deixou o Nordeste e veio para São Paulo, para a Liberdade, onde foi trabalhar como auxiliar de cozinha. Lá aprendeu tudo o que sabia sobre os pratos chineses mais pedidos e sua presença era garantia de autenticidade.

Quando o proprietário morreu, sua esposa decidiu vender o restaurante e voltar para a China. Queria morrer na China. E o China comprou o restaurante, manteve o nome e a tradição, mas implantou o seu diferencial.

Encomendou um cartaz com os dizeres “Aqui não tem talher”. Os clientes procuravam por restaurantes autênticos. China parecia mestiço, mas um autêntico. O cartaz reforçava a crença de que se estava num local chinês.

Um dia, China é chamado porque um cliente exigia talher. China vem da cozinha e vê o cliente: um mulato claro, de olhos incrivelmente azuis.

China pessoalmente entrega-lhe talheres. Conta-se que China ter-lhe-ia entregado tudo, até os segredos do seu lámen. Nunca mais se separaram.

René Henrique Götz Licht
Enviado por René Henrique Götz Licht em 12/08/2023
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