CONVERSA DE BAR

O bar já estava fechando, depois de uma noitada daquelas. Ainda insistiam em ficar lá algumas moscas, um cliente meio bêbado na casa dos cinquenta anos e o dono, português com bigodões e tudo, que estava morrendo de sono. Mas aquele cara não se mancava pra ir embora.

- Meu casamento foi pro saco.

Àquela altura da noite, o portuga queria ouvir tudo. Menos confissões de marido de saco cheio da vida a dois.

- Nem tenho mais vontade de voltar pra casa e encontrar aquela insuportável Maria Lúcia. Quero que ela morra. Morra pra sumir da minha vida.

O cliente, Joca, já tinha tomado umas quatro cervejas. Podia não estar muito sóbrio, mas suas palavras saíam bem articuladas.

Zé Portuga, o dono do bar, decidiu sentar à mesa e dar corda para o marido inconformado. Num tom de padre em confessionário falou:

- Você pensa que comigo é diferente? Quarenta e dois anos casados com a Maria, cinco filhos, dois netos. Por que acha que estou neste negócio de bar ? Quanto menos tempo passar lá em casa, menos encheção de saco vou arrumar.

- Que vida de merda! Tem que inventar um trabalho que se estenda por noite adentro só para ver menos a própria esposa, que deve estar dormindo como anjo.

- No caso da minha é o próprio diabo na forma de mulher. Não aguento mais nem olhar na cara daquela filha da puta.

- E por que não se manda de casa? Separa e se livra do problema. Resolve a coisa em dois palitos.

- É aí que você se engana. Penso nisso todas as horas. Fazer as malas e deixar tudo pra trás parece um caminho fácil... Acontece que isso não resolve o problema. Porque o problema vai junto com a gente. Pra onde a gente for.

- Porra, então este negócio de destino existe mesmo. A gente vem pra este mundo com tudo já arranjado. "Vai viver com esta fulana até morrer". Querendo ou não querendo. Que merda de vida!

O portuga vai buscar outra cerveja e traz um copo. O tema não poderia ser debatido assim, a seco.

- Acho que amo a Maria.

Falou isso num tom que beirava o consternado com o emocionado. Parecia que nunca tinha se dado conta de que amava a mulher pra valer, apesar de passar todas horas do dia metendo pau nela, achando defeito onde tinha e onde não tinha.

- Amar, amar. Esta coisa de amor não dura tantos anos. Quando a gente é jovem pode até dizer que está amando. Só com a possibilidade de encontrar com ela o coração dispara, a boca fica seca, dá uma sensação estranha, tipo devaneio. Depois que a gente fica velho, tudo isto vai pro ralo. Amor, paixão, tesão. Nada disso resiste ao dia a dia.

- Vou te confessar uma coisa. Acho mesmo que amo a Maria.

Zé Portuga estava chorando, Um choro tímido, meio inseguro, meio ralo ainda. Seus olhos marejaram e algumas lágrimas furtivas escorriam face abaixo numa lenta e solene caminhada.

- Você não sabe o que está dizendo. Amor é bobagem. Românticos são raça extinta, como dizia aquela música. Garanto que quando encontrar sua velha Maria vai acordar e reconhecer a merda com quem amarrou suas trouxas.

O português parece que não ouvia o que o cara dizia. Era como se tivesse caído em si e reconhecido que aquela mulher com quem casara era de fato o grande amor da sua vida. Apesar de viver criticando, era a Maria quem amava de fato nesta vida. Então pega a carteira no bolso de trás da calça e vai mostrar a foto dela, junto dos filhos e netos. E até do cachorro.

- Esta é a minha Maria. Aqui está o resto da turma. Estas fotos já estão meio velhas, mas são estes meus maiores tesouros.

Aquelas fotos deram uma sacolejada no Joca. Lembrou que nunca foi capaz de colocar a foto da família na carteira, Não tinha tinha nenhuma referência da mulher, filhos e netos. Tentava lembrar o rosto de cada um e só vinha um imenso vazio. Tentava buscar na memória alguma cena vivida com eles e nada. Tantos anos convivendo com sua família e não tinha um fiapo de lembrança. Era como se nunca tivessem existido. Olhava para cada foto da carteira do portuga e se martirizava num misto de inveja com raiva de si mesmo. Porra, não tinha a foto de ninguém!

- Linda família. Parabéns!

Naquela hora, lágrimas também brotaram daquele rosto enrugado, cansado e inconformado por não ter feito durante todos estes anos uma coisa tão simples assim, tão banal. Olhou fixo para o portuga e disse num tom confessional:

- Não tenho a foto de ninguém na minha carteira...

Então levantou e foi indo embora, sem ao menos se despedir e nem olhar para trás Não tinha nada a mais para se lamentar, reclamar, falar mal da companheira. Agora estava mergulhado de corpo e alma numa missão vital e não havia nada mais importante a fazer neste mundo do que colocar a foto do seu pessoal na carteira o quanto antes.

O casamento estava salvo.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 29/08/2023
Reeditado em 29/08/2023
Código do texto: T7872889
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