E JERÔNIMO ACABOU NA SAUDADE

E JERÔNIMO ACABOU NA SAUDADE

Dona Kátia está? foi o que perguntou Jerônimo ao José. José nada respondeu.

Jerônimo então fugiu dali e seguiu seu rumo pelas calçadas do Largo do Machado. Ele sabia que iria chegar em algum lugar.

A única coisa que ele não sabia, era se iria jantar. Seu estômago não roncava, seu estômago uivava. A dor era intensa. Mas o que fazer diante de um salário-mínimo e meio: deu aula de 8 da manhã até às sete da noite, e foi buscar um prato de sopa na Kátia, mas o José nada respondeu, e isso talvez tenha sido pela razão da sopa ter acabado.

Sim, a Kátia distribuía sopa grátis todos os dias de 17 às 20 h, e o nosso professor de física chegou 19 e 25 h no sobrado da Rua do Catete, onde morava a dona Kátia. Agora, os olhos do mestre em Dinâmica estavam úmidos. Ele passou muita fome para concluir seus estudos. Sentia muita saudade do tempo que sua mãe estava viva.

Aliás, saudade era quase sinônimo do nome Jerônimo. E agora o que fazer? o jeito seria comer três balinhas de iogurte, que ele encontraria em um pires em seu criado mudo que ficava do ladinho de seu colchonete, que ficava no chão do quarto, que ele mantinha limpíssimo na casa do Seu Murilo. Sim, o professor Jerônimo morava em um quarto alugado há três anos, para ficar mais perto do seu trabalho: um colégio do Estado do Rio de Janeiro, onde ministrava aulas de física e matemática.

Pagava mil reais de aluguel, e lhe sobrava 800,00 para contas, e comida. Como faria?

Ele pensava que a partir de 2023, tudo iria melhorar, mas como na letra de Renato Russo, isso ficou impossível, como que seu ministro iria ajudar? A política partidária nunca beneficia assalariados. – Ah que saudades da inflação, depois do plano real, parece que tudo ficou mais difícil depois ... Disse o rapaz rechonchudo, alto e de cabelos grisalhos, já aos 40 anos. Ele pensava assim sobre o plano real, antes dele, o seu pai ganhava melhor que ele, em seu humilde trabalho, sendo escriturário em um Banco. – Ah que saudades do tempo que eu morava em uma casa, com horta e pomar, não era muito grande, mas era independente e salutar.

Ele chegou em seu quarto, que além do colchonete, e de uma mesinha plástica, tinha também uma cadeirinha de madeira mambembe, que ele comprou de terceira mão, só para poder preparar suas aulas e corrigir suas provas, ah, ele também tinha uma cristaleira, que ficou como herança de sua mãe, que morreu de câncer, há dois anos, e também tinha um urinol. Ele sentia muita saudade da mãe, do pai e das irmãs. Eles moravam todos, em Minas Gerais.

Foi em Belo Horizonte que nasceu o professor Jerônimo, e cada vez mais ele sentia saudade do pai, e das irmãs, a última vez que os visitou, foi exatamente no velório e enterro de sua mãe.

Ele já estava sentindo muita saudade das balinhas de iogurte, que ele já devorou, com muita fome, agora ele só voltaria a mastigar no café da manhã, na Escola. Teria biscoito de maisena, e um pãozinho com margarina, com um copinho de café para cada professor, e isso se ele conseguir chegar antes de oito horas. Depois acaba.

Jerônimo é católico, devoto de Santa Rita de Cássia, e Santa Quitéria. E ele sente muita saudade de ir às missas de sua cidade Natal, todo dia ele chora, de tanta saudade da épi ca em que fazia as três refeições. Hoje, ele nem sabe se poderá se alimentar, já que nutrição representa apenas uma saudade em sua vida...

- Santa Quitéria andou com sua cabeça decapitada nas mãos, e eu preciso ser forte, quem sabe um dia viro Santo e opero milagres para ajudar aqueles que sonham com um mundo igualitário onde ninguém precise passar fome por ser professor...

Quando estava pensando nessa hipótese, o rapaz inteligentíssimo e amoroso escutou um barulho alto que vinha da sala no andar de baixo, da casa do Murilo. Aliás, Murilo era um negro alto e forte, lutou boxe no passado, e hoje estava aposentado "da polícia". A única relação entre ele e o professor Jerônimo, se dava todo a

dia 10 do mês, dia de pagar o aluguel. Nesta data eles se falavam. Na verdade Murilo nunca ofereceu nem um copo d´água ao docente.

Ossos do ofício, vivemos em um mundo onde a língua que se fala é o "capitalês", o que passa disso não é traduzido nem entendido. Voltando ao barulho pareceu de fogos, ou algo parecido.

E se repetiu por três vezes. Depois disso, Jerônimo não ouviu mais nada, mas percebeu que o som da televisão cessou. Ele imaginou que poderia ser algum amigo do Senhor Murilo que veio assistir a algum jogo de futebol, e resolveu comemorar os gols. De manhã, quando Jerônimo desceu a escadaria que levava até a saleta de TV do Murilo, ele deu um urro estridente, quando se deparou com o parrudo dono da casa caído em uma poça de sangue...

Aí Jerônimo sentiu mais saudade ainda do tempo que morou no apartamento da Katarina, na Rua do Ouvidor, afinal pelo menos lá, ele só saiu quando a colega, também professora fora despejada por falta de pagamento, mas não despejada por assassinato. Murilo era viúvo, e gostava de futebol, além de ser agiota.

A conclusão deste imbróglio é que o herói de esta história teve que sair dali, ficou morando debaixo de uma marquise de ônibus durante um mês, até quando o porteiro do Colégio, o senhor Ednaldo chamou ele para morar na casa dele, pagando o mesmo valor que pagava ao Murilo. Quando ele chegou na casa do Ednaldo, ele sentiu muita saudade do antigo senhorio, já que para chegar em Japeri, trabalhando no Catete, ocasionaria uma despesa de passagem, que antes ele não tinha, além de muita coragem e saúde para acordar às 3 da manhã, pois deveria pegar às 7 e 30 h, na zona sul do Rio de Janeiro. Mas não teve jeito : Jerônimo teria que enfrentar mais esta barra, afinal em se tratando de mobilidade social, professor é o último na cadeia alimentar.

E foi durante estas idas e vindas do professor: do trabalho para casa, e da casa para o trabalho, que se deu o fato mais inusitado do mundo: Murilo apareceu bem na frente do saudoso professor, e lhe segredou algo inusitado. Disse que tinha uma relíquia de ouro dezoito, enterrada no quintal de sua falecida avó, e queria que Jerônimo ficasse com ela, seu valor poderia girar em torno de quinhentos mil, e isso daria ao mestre a chance de adquirir sua casa própria, a única coisa que Murilo queria em troca, era que Jerônimo matasse “Paulão”, o cara que assassinou Murilo. Se ele matasse seu algoz, no dia seguinte ele apareceria na frente dele e lhe daria o endereço da casa e as coordenadas para que ele cavasse e achasse a joia.

Jerônimo ficou apavorado e pensativo. Começou a procurar um jeito de não sentir saudade da educação religiosa que o afetou toda a sua vida, e por estar sedento por mudar de vida resolveu cometer o que desaconselha o sexto mandamento de Deus.

Pediu ao Ednaldo para lhe emprestar um revólver, alegando ser para emprestar a um amigo que iria matar um bode. E assim fez, foi até onde estava o homem que matou Murilo, e o desafiou para um duelo, o bandido não medrou, e disse que só não o matava ali, pois perderia a graça. Jerônimo parecia um louco enfeitiçado, ele nunca procedeu... assim em toda a sua vida. Porém ele foi ao duelo em Nova Iguaçu, e até hoje está na saudade, já que ambos foram atingidos... agora procuram desesperadamente pelo fantasma de Murilo para matá-lo de novo.

Valéria Guerra
Enviado por Valéria Guerra em 31/08/2023
Reeditado em 01/09/2023
Código do texto: T7875096
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