A fome apetitosa, ascética ou a cruel Limos

          

          Com certeza, o caro leitor já sentiu, mas nunca passou fome. Para que se compare sentir com passar, dever-se-ia experimentar a dolorosa diferença. A primeira logo se resolve, saciando-a com pão; na segunda, complica-se, persiste a fome, sem parar, aguda, clamando sob o ronco do estômago vazio. Levantam-se vários motivos, até falta de comida, de dinheiro para adquiri-la, em qualquer feira ou bodega. Como era o caso de Arroto, perambulando pelas ruas de Pilar, onde trocava comida, apostando se ele aguentaria, coitado, seis pacotes de fubá, cru, puro, apenas ajudado por um litro d’água. O malvado espetáculo arrodeava-se de gritos, risadas e, finalmente, de aplausos. Visto que não se tratava de caridade, a perversidade lhe causava mal-estar, até adormecer no recanto da calçada, sonhando ter-se livrado da fome.
          A fome vem e vai muito longe, sob a indiferença política para uma melhor distribuição de riqueza, e de lugar no mundo do trabalho. A ONU fala que, no nosso país, “21 milhões de pessoas não têm o que comer, todos os dias”, aqui e acolá, aliviam esse sofrimento, com esmolas e restos do que sobra das faustas refeições, nos depósitos de lixo. Arroto e milhares de brasileiros convivem com essa miserabilidade. Tempos atrás, na órbita política, a obra de Josué de Castro, O Livro Negro da Fome suscitou discussões, debates e bons propósitos para acabar com a fome e com a desnutrição.
          Em torno de 1880, “profissionais da fome” a utilizavam para, em muitas cidades, na Europa e nos Estados Unidos, exibirem-se como “jejuadores profissionais”, que suportavam fome sem reclamar tal sofrimento. Isso inspirou Franz Kafka a escrever O artista da fome, elaborando explicações, até de ordem psicanalítica, sobre o porquê de o protagonista não ter vontade de comer e de exibir seu esquelético corpo a curioso público, salivando de prazer, motivado, talvez, por discreto sadomasoquismo. Depois, quase falecendo, sob o amontoado de palha que, por ironia, alimentava os animais circenses, “o artista da fome” balbuciou seus angustiosos sentimentos, trazidos da infância, que seriam as razões da sua fácil  coragem de enfrentar a fome. Perdeu. Nesse conto, como na realidade ocorre, o artista faminto morre, por insuficiência alimentar e por nunca ter tido a comida desejada...
          Não escrevo sobre anorexia. Os que se consagram ao faquirismo adquirem alto domínio do corpo e das suas vontades, acrescento, perdem também energia corporal. O faquir fica à exposição pública, amealhando ajuda, até deitado em longos e pontiagudos pregos, sem importunar-se com qualquer sentimento de dor ou sobretudo de falta de comida, ganhando, assim, pela fome, elevação ascética: submissão da carne ao espírito. Não é o caso de Arroto, tampouco dos que passam fome...
          Cruel fome é a que se reveste de poderes divinos, Limos, como a lida em As Metamorfoses, de Ovídio. A divindade Fome obedece às ordens da deusa Ceres, punindo Erisícton por ter cortado  árvore do seu bosque. Por aqui, entre nós, imaginem-se quantas punições haveria... Por isso, deveria o punido molestar-se, intensamente com insaciável gula, a passar fome, fome cruel e não menos insaciável. Punido assim, sua insaturável gula, filha da fome, na falta de comida, começa a comer seu próprio corpo, a começar pelas suas mãos e pelos seus braços, e sem diminuir a fome... Completo com Machado de Assis, em Poesias Completas: “Sei de uma criatura antiga e formidável, / Que a si mesma devora os membros e as entranhas, / Com a sofreguidão da fome insaciável.”  

 

Damião Ramos Cavalcanti