Domenico De Masi, em saudosas circunstâncias

          Em retorno das férias de Páscoa, estávamos eu e Ernando Teixeira, anos depois Padre Ernando, na saída da cidade de Bologna (Itália), balançando uma pequena bandeira brasileira, como era a forma de se identificar quem estaria pedindo l’autostop, ou culturalmente no nosso Nordeste, bigu, que significa pedir carona para viajar de graça. Éramos estudantes, costumeiros a conhecer a bela bota Itália sem despesas de transporte. Quanto a nós, restavam poucas liras no bolso... Era o ano de 1968, e nesse período, após a Semana Santa, já não sentíamos frio, gozávamos de uma temperatura agradável e primaveril.
          Quando, atendendo ao nosso polegar para cima, para um luxuoso e bonito Fiat, perguntando-nos: “Dove vanno”? Esclarecemos que desejávamos voltar a Roma, onde estudávamos. Abertas e fechadas as portas, o carro partiu, e praticamente durante uma mezzoretta em silêncio, satisfeitos em termos conseguido, sem gasto algum, uma promissora confortável viagem. Reconhecendo a nossa bandeira, o motorista da carona indagou, acertando: Brasiliani? Respondemos, em tom alto e sonoro e afirmativamente, ao mesmo tempo, quase em coro, que sim. Sorriu abertamente e confessou seus amores pelo Brasil. Perguntou os nossos nomes e disse o seu: Io mi chiamo Domenico, e ainda sorridente, completou: Domenico De Masi. Sem percebermos a importância daquela companhia, naquela coincidente circunstância, ignorávamos que ele era simplesmente o famoso, in persona, um dos maiores intelectuais do século XX. Ignorância que se desfazia aos poucos, pela descrição do seu trabalho, na Università di Napoli e na di Roma, La Sapienza. Aprofundamos o nosso conhecimento sobre o bondoso professore, quando chegamos em Roma, buscando detalhes de quem estava por trás do nome de Domenico De Masi.
          Era o sociólogo e também filósofo que se dedicava a pesquisar sobre a natureza do trabalho, da felicidade ou da infelicidade de quem encontra um lugar para trabalhar e daqueles que, dadas as condições, conseguem viver bem sem trabalhar, escapando do determinismo bíblico: “Com o suor do teu rosto, comerás o teu pão, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó retornarás” (Gn 3, 19). Domenico De Masi, depois dos seus trabalhos sobre o trabalho, reincorporou-se a esse supracitado pó, em Roma, nesse último 9 de setembro, de “morte morrida”, como, naturalmente, referem-se à morte nossos matutos e os campesinos sicilianos e da reggio calabria, cujos costumes ele tanto amava... Noticia-se que, antes de morrer, passou dias nessas terras, descansando nas paisagens acerca da comuna italiana de Ravello.
          Na França, privilegiado fui em estudar e pesquisar com o emérito Professor Joffre Dumazedier, docente da Sorbonne V, que muito escreveu, quase como militância, sobre a Sociologie du Loisir (Sociologia do Lazer), o que muito se relaciona com o campo de pesquisa, estudo e reflexões de De Masi, quando ele se refere às transformações do trabalho, no mundo atual, na sociedade pós-industrial, diante da revolução causada pelas novas tecnologias, que praticamente substituem a mão de obra humana, simbolicamente, no trabalho realizado pela própria mão, de carne e osso. Em relação a isso, podemos cogitar como será, num futuro próximo, um maior desaparecimento das nossas profissões, e quanto tempo sobrará daquelas atividades que tínhamos sem o uso de tais instrumentos. A obra de De Masi, que mais nos inspira, é O Futuro do Trabalho - Fadiga e Ócio na Sociedade Pós-Industrial ou Il Futuro Del Lavoro - Fatica e ozio nella società postindustriale. Um homem da estirpe de Norberto Bobbio.
          Na verdade, é circunstância também coincidente aquela da saída de Bologna a Roma, em 1968, com esta de agora. Nunca pensei que escreveria sobre aquela oportunidade, sobre ele, De Masi, e sobre sua obra, logo após a sua morte. Coisas da vida.