Pintura de um Mundo Quase Perfeito

Pintura de um Mundo Quase Perfeito

Há 22 anos, pude adquirir um apartamento que, até então, era o mais alto de minha cidade. Uma construção imponente que acariciava as nuvens vindas do norte e era sempre o primeiro a receber as gotas da chuva de verão.

Preferi que meu apartamento estivesse localizado no último andar, e como na ocasião, havia meios para que essa possibilidade fosse concretizada, tomei-o às posses.

Lembro-me perfeitamente do que mais me marcou quando adentrei o recinto pela primeira vez; a visão que conseguia ter pela janela, naquela altura, fazia parecer, o edifício, bem mais alto do que as minhas expectativas sonhavam predizer, e o fato que contribuía com essa impressão, era que eu tinha a plena certeza que, de minha janela, era possível enxergar todo o mundo.

Logo quando me estabeleci definitivamente, decidi abrir a janela para arejar. Interessante: a possibilidade de estar acima de tudo e de todos, me dava a sensação de onipresença e onisciência. Parecia saber de tudo o que ocorria por todos os cantos. E sinceramente não gostei do que vi. Das nuvens, pude ver todas as mazelas daquele mundo. As pessoas se matavam por nada, tomavam os pertences uns dos outros. No trânsito, a caminho do trabalho se desrespeitavam, se ofendiam. Os jovens tomavam a vez dos mais velhos e não mais os ajudavam a atravessar as ruas. Muitas e muitas pessoas se alimentavam das sobras, pelos lixos. A consumação dos recursos naturais estava muito além do que o planeta podia servir e não dávamos nada em troca, nem mesmo a conscientização acerca daqueles problemas. Pude perceber o egoísmo e o egocentrismo cada vez mais exacerbado daquele povo. O mundo estava doente. Muito doente!

Como era chegado às artes, e, de fato, era um dos meus hobbies preferidos, usufruí de tal facilidade e me senti à vontade em tomar minhas providências para mudar o mundo. Pintá-lo ao meu modo.

Fui a uma casa especializada em materiais para pintura, comprei algumas tintas que me faltavam, e que, certamente eram as melhores tonalidades para um mundo melhor. Voltei empolgado ao meu apartamento, e não perdi tempo. Forrei o chão, logo abaixo da janela e a fechei. Sobre a vidraça então, comecei a pintar, de modo que, as pequenas pinceladas se sobrepusessem às enfermidades do mundo, escondendo-as de mim, e, por outro lado, as partes boas, estariam sendo reveladas pela transparência das partes do vidro que ficariam sem receber a tinta. Eu havia achado a fórmula perfeita. Porém, a minha alegria veio de forma tão rápida, assim como se foi, pois, logo que dei um passo ao lado, a perspectiva fez com que minhas pinturas planassem para o lado oposto ao meu movimento, exibindo novamente as feridas abertas de nosso planeta. A beleza está em apenas um ponto de vista, constatei. Então eu entendi, e mudei...

Teimoso e disposto a progredir, em minha incursão terminei por pintar toda a vidraça com o mundo perfeito, onde os indivíduos eram altruístas e construtores de uma felicidade coletiva.

Durante dias, ao chegar do trabalho, postava-me a olhar o meu mundo idealizado. Sempre limpo e ensolarado. As pessoas muito solidárias tinham estampadas no rosto um sorriso entusiástico e eram sempre honestas.

No trânsito, os que estavam motorizados cediam passagem aos pedestres e pediam desculpas se cometessem alguma infração. Os jovens eram cordiais com os de mais idade e todos conjuntamente cooperavam com a limpeza pública.

O tempo normalmente se passou, e com algumas semanas, não suportava mais olhar o mundo perfeito pintado em minha janela. Ele era parado, estático, sem nenhuma vida. E assim foi morrendo aos meus olhos vítima de um tédio, que agora, era um companheiro constante.

Se o mundo real me deixava aflito, a verdade era que o mundo perfeito me parecia tão inanimado e irreal quanto fosse possível, e da forma como uma vez foi platônica, minha meta se tornou demasiadamente utópica. Sozinho eu não poderia mudar o mundo. Então eu entendi, e mudei uma vez mais.

Peguei uma esponja e uma espátula, e comecei a raspar e diluir as cores na minha frente. Olhei novamente para o verdadeiro e injusto mundo lá fora, suspirei, e num ato de proteção, pintei toda a vidraça de preto.

Encontro-me de luto até os dias de hoje.

Dezembro de 2007

Duke Webwriter
Enviado por Duke Webwriter em 22/12/2007
Reeditado em 09/02/2012
Código do texto: T788717
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