Democracia não conceituada é banal

 

          Há certo tempo e frequentemente, usa-se, em qualquer discurso ou em qualquer conversa, a palavra ‘democracia’ sem saber o que seja democracia, confundindo-a com um simples poder fazer; com usar de excessiva licença para os atos mais tolos e sobretudo sem levar em consideração a disciplina cívica que atente ao Bem Comum. Alguns até tentam defini-la, e só etimologicamente, explicando que o seu demo significa povo, e o cracia, poder. Outros vão avante, juntando à tentativa da sua complexa definição a finalidade substanciosa desse valor cidadão, quase como se fosse uma explicitação dos termos constitucionais: ser a democracia do povo, para o povo e escolhida pelo povo... Contudo, desvirtua sua completa definição ou conceito, ao tentar usar a democracia simplesmente como um “poder fazer”,  uma mera vontade ou capricho, para justificar uma escolha corriqueira, ad exemplum, de poder ou não tomar um remédio. Ou numa discussão, pedindo a vez de falar, com a pobre indagação “cadê a democracia?”. O peso da palavra ‘democracia’ não pesa gramas, como o do friso ou o do parafuso, mas toneladas, como se pertencesse, nesse sentido, ao conjunto da liberdade.
          Distingo, nesses instantes, quem está usando, inadequadamente, tão substanciosa palavra e ignorando o seu significandum ou o seu significans; ou a ideia de democracia ou a própria coisa, ela em si mesma. Não se deve vulgarizar o nome da democracia, apenas para poder escolher o vinho branco no lugar do vinho tinto... Tais mesmices, distantes e fora do contexto do que venha a ser democracia, banalizam e empobrecem tão rico termo, cheio de experiência política e do respeitável funcionamento das instituições democráticas, quanto ao poder legislativo, executivo e judiciário. Enfim, basta de se vulgarizar a palavra para não se banalizar o conceito, e consequente e eticamente, seus deveres e, por último, seus direitos. A democracia não se usa diretamente para um bem menor e individual. O indivíduo se beneficia da democracia, quando ela já tem beneficiado todos os outros indivíduos da sociedade política, para um bem maior, mais comum e coletivo. É quando o indivíduo também usufrui desse bem. Falar de democracia sem conceituá-la é uma temeridade para a consequente individualização e destruição do seu verdadeiro e adequado conceito. Por isso, a existência da democracia não cai do céu, ela é fruto de luta altruística, participativa e coletiva, e nunca de interesse meramente individualista. 
         Na Grécia, berço da democracia, aqueles que se apoderavam do poder político por corrupta astúcia ou pela força e violência, eram chamados de tiranos. Eram reis que acumulavam em baixo dos seus tronos as funções de chefe das guerras, de juiz e de sacerdote. Tal categoria política é feitora da antidemocracia, que alicerçava a política da tirania. Então vieram os conceituados princípios da democracia ateniense, em cuja construção não se pode esquecer o nome de Péricles, escolhido na História da Grécia como nome para se designar o Século de Péricles, período em que se consolidou Atenas, como conquistadora da hegemonia sobre a Hélade.
          Péricles realizou ideias, aplicáveis até os dias de hoje: restringindo o poder do Areópago; criando tribunais populares; proclamando a igualdade de todos os cidadãos; tornando Atenas respeitada, conciliadora e influente no exterior; combatendo a fome; fortificando a frota marítima; erigindo longas e grandes muralhas em defesa da cidade contra as possíveis tropas invasoras; e construindo monumentos, teatros, templos, ginásios e estádios, alguns dos quais, hoje, servem de atração turística à Grécia. Orador de excelência, naquele mundo filosófico, Péricles sabia conceituar a democracia, e como bom orador convencer os atenienses sobre as peças mais elogiosas, não à sua democracia, mas a que emana do poder do povo. Não se tratava de uma hierofania, mas de uma realidade de coletiva vida democrática.