Negrinha, Monteiro Lobato e algo mais.

Este é um conto que não carece de explicações maiores em sua leitura prática, sendo emotivo e que quer nos pegar nisso, porém pode e tem outros olhares. É um recorte histórico duro e cruel de um tempo que existiu e onde ocorreu o que é narrado e não pode ser negado ou esquecido, como tudo que precede nosso tempo e foi ruim, apesar da dor, é algo importante para a evolução social e para nos dizer porque somos o que somos.

O fim da escravidão não acabou ou modificou da noite para o dia com as pessoas que tinham em sua formação o trato que tinham em relação aos negros. Costumes não são jamais substituídos por leis de imediato e é preciso por parte da sociedade a adaptação que será gradual até a extinção de tais costumes.

Em negrinha temos um recorte, o retrato deste destino lento, e em prática posto por uma senhora que em momento algum em sua mente julga o que está fazendo errado ou de cunho imoral e inaceitável. Aquele tempo sócio - histórico não a permitia avaliar assim e aqui podemos fazer vários recortes apenas pela senhora:

Ela cresceu assim e morrerá assim. Em sua vida desde o berço foi educada assim. Ela pode ser que até se via nas sobrinhas quando menina e que a curiosidade e momento de afeção daquelas por negrinha era a mesma que a fez amolecer brevemente no fim.

Ela não é perturbada em sua sensação de religiosidade e é absolvida pelo padre local e isso a incentiva a não mudar pois a autoridade vicia os que a seguem e nesse caso, a igreja era parte da cultura formadora, (parte) daquele meio e com pouca oposição de outras fontes culturais. Ela não entende o conceito de igualdade entre humanos pois assim era, assim como para a igreja, eles, os escravos eram peças, que muito contribuíram para que a ordem religiosa economizasse: uma das práticas comuns era pegar emprestado dos coronéis seus escravos para trabalhos nas suas sedes e realização de seus serviços, sem pagar nada geralmente.

Temos que entender tempos e tempos depois, A primeira guerra mundial por exemplo, em muito foi motivada por questões de xenofobia, eram naturais dentro das sociedades, e poucos dentro daquelas comunidades tinha entendimento do mal envolvido. Na Áustria e depois Alemanha onde Hitler se formou, havia várias etinias e povos imigrantes e era a eles atribuída a decadência por boa parte das pessoas. Muitos dos nazistas burocratas e dirigentes de campos de concentração não viam maldade alguma em suas atrocidades e comportamento diante do extermínio judeu e de outros, quando Eichman foi levado a Israel para ser julgado por seus crimes não os entendia como tais. Ele fora educado pela convivência, não se comovia pela normatização de atrocidades, outro relato impressionante sobre esta normatização está no depoimento de Rudolph Hess, comandante em Auchwits onde se observa que para ele o que faz é um trabalho como outro qualquer, sem implicações maiores. Burocrático e eficiente. Pode parecer pesada a comparação, porém no caso escravocrata, é comparável em termos de pensamento de quem cometeu e normatizou aquilo para ver onde pode chegar um sentimento quando é socializado.

A senhora do conto é do mesmo processo assim como se encaixarão brevemente no futuro, as sobrinhas.

Da parte de Negrinha, ela é mais do que tudo aos olhos de si mesma uma coisa, que não se entende ou não entende o que lhe ocorre, sendo levada a se culpar de sua situação sem pretender lutar por conta de ser pura em função de sua idade e dessa pureza quase animal dada pelo autor (e aqui é um dos pontos onde se puxa para a tendência a racismo).

Ao ser posta diante dessa face humana que produz a desigualdade entre seres, ela se encontra achando que não merece a vida, a que conheceu após contatos com coisas de criança, ela gostaria de poder ter e não as merece por não ter a mesma “alma” daquelas meninas que para ela são seres divinos e distantes, se colocarmos em pontos antropológicos e históricos isso ocorreu em alguns casos nos encontros civilizacionais, as grandes conquistas em geral, e colonização tiveram esse ponto como algo forte.

Foi criada como “coisa” e ensinada a ser isso, não entende racionalmente más não suporta a ideia de que continuará nesta situação, de que nunca alcançará aquela felicidade dos anjos que são as meninas e, nem a pureza daquela boneca novamente pois entendeu a partir daquele contato que a vida que conhecia era semelhante à existência da boneca. Em seu renascimento jamais teria a fraternidade que era dispensada ao objeto, ou retornaria a aquele estado inocente de sofrimento incompreensível e sem escolha. Ela morre de tristeza e temos uma cena linda, composta de um lirismo impecável onde é circundada por seres inocentes como ela, anjos em forma de bonecos de louça que a deram o vislumbre de vida com sentimentos simples e que era aquilo que lhe foi usurpado durante sua existência. Este é o sentido que ela entendeu e aceitou até porque era um indefeso ser em um cantinho esquecido. Quando se conhece a humanidade não se aceita mais viver sem ela. O autor nos mostra que morreu como animal incompreendendo porque foi assim e vemos que a vida dos demais, continuou, apenas Negrinha sofre, e apenas o leitor, se ruboriza e pode ser por ter uma leitura de quanto a menina é desumanizada ou do quanto é cruel o fim dela.

O texto já dito, cruel com o leitor, cheio de atrocidades e sem rodeios serve para mostrar os maus tratos e tortura aplicada a personagem. Temos mais repugnância por saber do destino de negrinha desde sempre. Não temos força por ansiar outro final ou desejamos que ela sobreviva como o mesmo ser, seu arrebatamento puro é melhor. Ela não é redimida ao fim e apenas é mais uma das incontáveis negrinhas naqueles dias que morreu e foi tratada como um animal. A cena de sua partida é religiosa porém, não esconde a crueldade vitoriosa sobre a indefesa menina?

E então entramos no caso de Monteiro Lobato: Ele era racista?

Podemos dizer que este conto pode revelar que ele entendia quem era escravocrata como uma figura pura de seu tempo. O que se pegarmos o recorte histórico é compreensível porém inaceitável negar que para um homem letrado e de importância relevante na literatura é condenável que nunca em vida pareça ter feito uma avaliação de seu pensamento (não sei se fez). Importante dizer que Lobato viera de uma região de fazendas, foi fazendeiro e é possível que tivesse inclinação a defender a segregação ao menos de classes por conta de interesse econômico (essa conjectura é minha).

Más neste conto não dá para dizer que ele está indiferente a situação desta “herança” que o povo brasileiro carrega.

Martiriza negrinha e desumaniza a senhora. A menina é recebida no céu e a senhora está condenada a viver sobre os dogmas religiosos tortos e deles ser dependente.

É claro que isto ao leitor pode ser desagradável pois não há o justiçamento necessário na terra e temos que ver que esta é a intenção do autor. Ele nos choca com coisas permitidas ao tempo que se passaram e que em termos literários devem ser vistos assim e não com uma visão histórica geral. Ou podemos interpretar como redenção, já que a maioria dos santos foi martirizada e humilhada para depois ascender aos cânones e a viver ao lado de Jesus.

As críticas são compreensíveis por parte de quem afirma que o autor era um escravocrata racista apesar de já não haver escravidão quando ganhou notoriedade, claro que isso não tira sua tendência, em uma visão minha, cenas gráficas que se fazem em nossa mente ao ver esta criança sendo destruída por dentro e por fora já dariam peso suficiente, por exemplo as “imagens” são desnecessárias em casos como do ovo cozido. Parece que temos aqui uma exacerbação do terror para que sintamos a dor e nível da desumanidade porém quem disser que o descrito pelo autor e no contexto é “fazer a personagem sofrer até a última linha” numa inspiração masoquista pode ler de tal forma e não será fácil contestar pois é desnecessária para contextualizar, porém em minha leitura reforça a maldade da senhora também.

O conto é bom porém apela ao sentimentalismo de piedade para nos criar um ser inocente como um anjo ou boneca sendo assim um objeto aos olhos do mundo (e até do autor em certo contexto), um fardo em sua própria existência e um incômodo na existência de nossa história quando pensamos que houve e há situações assim.

Eu fico com o lado que acha que Monteiro era sim um racista más não sei se sua obra perde relevância exatamente por mostrar o censo comum de uma grande parte da aristocracia e até da população que ganhou concorrência no trabalho e na sociedade ativa e por isso, apesar de todas as dores também nos formou. É uma hipocrisia achar que a mente nacional seria construída sem elementos dolorosos (personagens, apesar de não encaixar Monteiro Lobato assim) e que todos os que eram senhores ou vultos e usaram abjetividades não precisariam existir e devem ser apagados, vide H.P. Lovecraft por exemplo, sua obra só existiu graças a seus preconceitos e apesar desse ponto, é inspiração e base indispensável aos caminhos que a arte tomou quando se fala principalmente do terror, do delírio e do fantástico. Para pessoas que tenham minha faixa de idade, acho que o sítio do Pica - pau Amarelo fez parte da formação (ou ao menos foi distração como em meu caso).

Só o distanciamento nos pode melhorar, nunca a negação e criar heroísmos absolutos ou monstros impávidos e maus até os ossos é possível ou intelectualmente defensável pois há mais que uma camada em tudo.

O apelo emocional e gráfico no texto, em excesso atrapalha a leitura de modo independente, e gera exatamente inserção demais em uma única camada e acho algo que deveria ser afastado dos olhos do leitor para que pudesse entender os contextos que se deseja passar, se é que este era o objetivo do autor, Eu gosto de textos que contem, tenham lado porém não queiram ter a pretensão de me induzir ou mascarar uma intenção. Este texto me induz.

O texto deve ou contribuir com a nossa experiência de leitura e nos deixar tirar a nossa interpretação ou (e) deve ser uma peça desde o começo proposto a nos guiar em sua narrativa seja ele com qualquer propósito, através de linhas abstratas ou diretas para que cheguemos ao ponto correto de onde nós faremos essa estrada, esse é o grande texto, o que nos faz interpretar com crítica para gostar ou não, ou apenas distrair más que tenha uma estrada e a cada um vai entregar a oportunidade de criar paisagem que será nossa visão, AQUI ESTOU FALANDO DE FICÇÃO.

Quanto a negrinha ? Ainda existem milhões mundo afora.

Lobato? Uma dualidade necessária para a sociedade e a arte.

Algo mais: Amanhã ainda estaremos polemizando o passado, o esquecendo e nem ai, pensando no futuro...

Afonso Ribeiro jr
Enviado por Afonso Ribeiro jr em 12/10/2023
Código do texto: T7907087
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