Reflexão estranha.

Hoje eu levei minha coroa para fazer hemograma completo a pedido da reumatologista, entramos na clínica por volta das 8h da manhã, havia pouca gente e os trabalhadores demonstravam uma serenidade contagiante. Feito o pagamento na recepção, é exigência da casa, caminhamos para o local de tirar sangue. Quando alcançamos o vão estreito no meio do corredor parecido com um pequeno hall anexo defronte da sala de coleta, já havia três pessoas sentadas aguardando a chamada feita por ordem de chegada. Uma idosa ocupava o lugar colado a um dos cantos de parede, sentei-me na ponta vizinho ao corredor e acomodei minha mãe na cadeira ao lado; embora houvesse assento para o máximo de oito pacientes, um casal que nos seguiu até ali preferiu ficar de pé. Do lado oposto, sentados defronte e a pequena distância, um homem na faixa dos 45 anos, calculo, mantinha a cabeça apoiada no outro canto de parede e, na extremidade, também rente ao corredor, uma mulher de meia idade aguardava um acompanhante seu concluir o procedimento. A seriedade flagrante no semblante dessa gente sisuda cujo único propósito era curar-se de seus males contrastava totalmente com a serenidade descontraída dos funcionários no atendimento. Para tornar o ambiente ainda mais soturno uma reportagem da guerra na faixa de Gaza estava sendo transmitida no monitor de chamada instalado sobre a porta do pequeno laboratório, eu assistia a transmissão na expectativa de ver surgir o nome da minha coroa na tela seguido do sinal de alerta sonoro. Ocorreu-me, de repente, de quebrar o silêncio e a melancolia do grupo e decidi invocar a atenção daquelas pessoas para uma reflexão que eu tivera de momento, e, dirigindo-me a todos, falei: - Vocês já repararam nesses vampiros de carteira assinada? Os dois diante de mim franziram o sobrolho em função do dito estranho e inesperado e aguardaram a conclusão do raciocínio, os demais permaneceram calados a observar, e continuei: - No mundo tem uma porção de gente que é assim (expressei esta frase a modos de indignação, e prossegui), capaz de se esforçar anos a fio nos estudos e depois escolher trabalhar retirando sangue na veia das pessoas, juro, fico muito assustado com isso, vocês não? A senhora logo a frente soltou um sorriso singelo e olhando fixo em meus olhos foi taxativa na observação, disse o seguinte: - O senhor tem medo de tirar sangue. A frase em si não tem lá um grande efeito, mas foi pronunciada com o verdadeiro espanto da descoberta de um ato desonroso para um homem da minha idade - foi o que ela deu a entender - e com a mesma gravidade de uma sentença condenatória. Sem desviar o olhar ela quase não completa o juízo de valor, pois uma gargalhada contagiante irrompeu-lhe dos pulmões ou de lugar mais profundo semelhante uma explosão, tão intensa, que ela precisou elevar o rosto, e, de boca bem aberta para o alto, deu vazão ao seu estado emocional de felicidade. Parece demasiado, mas foi real, o momento foi deveras engraçado, nem eu que previamente esperava provocar algum sorriso naquele pessoal resisti à hilaridade coletiva causada pela risada exuberante daquela distinta senhora e à acusação da qual fui vítima, resultado, caí na risada junto. Até os funcionários, ao circularem de passagem por onde estávamos reunidos, riram sem saber do quê; sorriram, por terem sido corrompidos pela nossa alegria. Minha mãe, coitada, penalizada, tentou absolver o filho de possível vexame alegando que não, Ele não tem medo, não! Mas, como Ela refutou a acusação sob o efeito da risadagem no entorno, garanto a você, leitor, ninguém no juri acreditou na seriedade do seu ato de defesa, até porque, ela, igualmente, sofreu o contágio da comicidade reinante, foi unânime. Curti de verdade a situação porque ultrapassou o limite do esperado. Interiormente imagino que todos descontraíram. Daí surgiu o desejo de registrar o ensejo divertido.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 13/10/2023
Reeditado em 07/01/2024
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