Vixi, mano! Copiou que o Professor é canhoto?
O Educador começou a trabalhar no Projeto Criança Cidadã em junho de 2003. Crianças de sete a onze anos e adolescentes de doze a quinze atendidos no contra-turno da escola.
Na época, eram dezessete Núcleos de Ação Comunitária - atualmente os Centros de Referência da Assistência Social, os famosos CRAS - localizados nas regiões de risco e vulnerabilidade social da cidade.
O objetivo principal era possibilitar a aquisição conhecimentos e estimular o desenvolvimento de competências e habilidades com pegada pra impactar positivamente o rendimento escolar e propiciar uma melhor convivência familiar e comunitária.
Bacana, né? Resenha de primeira! Ah, o poder da palavra! Causa mesmo!
- Mas e aí, na real, funciona? Vira alguma coisa? Muda a vida da meninada? Da resultado?
Aí vem aquela resposta, a mais manjada de todos os tempos:
- Depende...
- Mais em cima do muro que essa, impossível!
E aí vem o apreço pelo negativo, a paixão pela condenação e até o prazer com o insucesso alheio. Ah, ser humano! Que delícia presenciar uma desgraça! Que fascínio pelo sangue que escorre...
- Ah, sabia! Tá falando assim pra não admitir que projeto socioeducativo não serve pra nada!
- Também não é assim, né? Serve pras mães que trabalham terem onde deixar as crianças e pros adolescentes não ficarem soltos na rua dando mole pra cair no crime e nas drogas...
- É o puro creme da creche e da Fundação Casa com outro nome!
- E tem o lance do rango: café da manhã, almoço e café da tarde. Pelo menos o pessoal estica o couro da barriga!
- E, entre as refeições, geral ainda se diverte: os meninos batem uma bola, as meninas dançam ao som do pancadão. Os Educadores não fazem nada. A Assistente Social, menos ainda...
Ah, ser humano! Como é fácil generalizar a minoria podre, nivelar por baixo, colocar todo mundo na mesma prateleira: a última...
A partir de um simples "depende", se define um projeto social como um repositório de gente: um campo de concentração com hora pra chegar, comer, esperar o tempo passar, comer de novo e ir embora...
Fala sério!
Falando sério: depende mesmo!
E pode dar bom, sim! É só querer fazer, botar a mão na massa, envolver, integrar todo mundo: criança, adolescente, família, escola, comunidade, coordenador pedagógico, educador, assistente social, cozinheira, serviços gerais.
Mas também não vâmo enganar ninguém não: o processo é osso e os resultados não aparecem tão cedo. São anos de "planejamento-objetivo-conteúdo-metodologia-avaliação" pra começar a colher os frutos.
A equação é aquela de sempre: cinco por cento de inspiração e noventa e cinco de transpiração. E cansa, desgasta, consome o cidadão que realmente se dedica, com afinco, coragem e fé, a tentar fazer alguma coisa pra quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza, agindo como "instrumentalizador de percepção e expansão de horizontes", auxiliando as crianças e adolescentes a desenvolverem uma visão crítica da realidade em que estão inseridos e, querendo, partirem pra ação pra mudá-la.
Só isso! Só todo santo dia! Mais mole que uma gelatina fora do refrigerador depois de meia hora! Só que não, né?
E o pior é que o Educador já tava há quase dois anos na mesma: só na substituição! Cada dia era mandado pra um Núcleo diferente pra cobrir faltas dos Educadores "titulares de sala".
Nos dias em que ninguém precisava do "tapa-buracos", o Educador ajudava as colegas da Cidade da Criança, segunda e quarta com a turma da Fase I (as crianças) e terça e quinta com o pessoal da Fase II (os adolescentes).
Pegavam o ônibus da Prefeitura na rodoviária, tocavam pra Vila Nova Prudente pra embarcar a molecada do bairro e levar pra Cidade da Criança pra desenvolver as atividades do Projeto lá.
Mas também eram raras as semanas em que o Educador conseguia trabalhar todos os dias lá porque sempre tinha alguém ficando doente, abonando falta ou saindo de licença.
Aí que ficava sempre prejudicado o elemento essencial pra poder avançar pra "águas mais profundas": o tão sonhado, tão precioso, tão almejado, o imprescindível "vínculo educador-educando".
- Desse jeito é nunca que vou conseguir ter continuidade pra emplacar um trabalho com a filosofia de formação de cidadãos conscientes de sua situação e capazes de modificá-la com a obtenção de conhecimento e cultura! Na teoria, o discurso "envernizado" já tava pronto fazia tempo...
Por outro lado, tava acumulando uma bagagem enorme de saber e vivência: do território, das pessoas, de cultura, de ambiente, de organização social, de convenções e "leis" de cada região da cidade, de solidariedade, de honestidade, de força de vontade, de resiliência e de religiosidade de um povo sofrido que tem que matar um leão por dia pra sobreviver. Essa parte do bilhete é verdadeira...
E, de quebra, ainda tava tendo oportunidade de aprender como se deve e como não se deve trabalhar em projeto social...
Até que, numa certa sexta-feira - era o dia em que não havia atendimento às crianças e adolescentes, destinado a planejamento das atividades a serem realizadas e visitas às escolas e famílias - o Educador foi chamado pra uma reunião na Secretaria de Assistência Social.
- É o seguinte: a Educadora da Fase II do Nochette tá sendo transferida pra Secretaria de Assuntos Jurídicos. Então, como você já tá há um bom tempo só rodando pelos Núcleos, cobrindo as abonadas e licenças dos educadores; e como a gente já percebeu que você tem assim - digamos - uma preferência pelos adolescentes; e como você mora lá perto...
- Caramba! Uma turma pra chamar de minha!
Ah, inocente! Aprendeu rápido que um Educador nunca é "dono" de uma turma, ainda mais de adolescentes. Na verdade, é o contrário: são os "mano" e as "mina" que tem um Educador!
E não curtem nada, mas nada mesmo quando o Educador deles vai embora, assim, de repente, pra trabalhar em outro lugar...
O "luto": foi o primeiro grande desafio do Educador quando abraçou a Fase II do Núcleo Ormando Nochette.
A galera era firmeza - o Educador já havia substituído várias vezes lá e conhecia muito bem o trabalho, por sinal, de excelência, que era realizado - mas tava todo mundo bolado com a saída da Educadora da Fase II: uma enorme dificuldade pra aceitar a "perda".
E aí não tem jeito: o canhão acaba sendo virado pra quem chega pra "tomar o lugar" - na concepção deles - de quem foi embora.
O Educador já sentiu a febre logo no primeiro dia: madrugou, chegou bem cedo pra tentar causar uma boa primeira impressão, receber o pessoal quando começassem a chegar, mas quando entrou no refeitório...
"Sabe de nada, inocente!"
Já tava todo mundo lá, pronto pro "fight"! Só que no modo "gelo total": os meninos batendo bola, as meninas ouvindo música e ninguém, absolutamente ninguém nem aí pro Educador!
"Bom, se é pra encarar, bora encarar pra valer então!"
- Salve, pessoal! Todo mundo já tomou café! Que beleza! Acho que a gente já pode ir lá pra sala pra começar a atividade do dia! Bora?
- Aí, Professor! É o seguinte: castela aquela lata de lixo ali? Tâmo aqui na competição pra ver quem vai ser o primeiro a acertar a bola lá dentro, tá ligado?
- Quando alguém marcar um gol lá, aí geral vai lá pra sala! Se quiser colar lá pra esperar, vai na fé...
O Educador entendeu a jogada: podia morder a isca e já trombar de frente e, de cara, acabar com a palhaçada, engrossar a voz, mostrar quem manda, recolher a bola, fazer todo mundo ir pra sala e já dar o primeiro motivo pra comparações e - adivinha só - quem seria o vilão da história?
- Vâmo fazer assim então, irmão: posso tentar acertar a bola na lixeira também?
Sabe aquelas cenas de filme em que o tempo congela? A bola ali, no chão. O rádio tocando pra um total de zero pessoas cantando e dançando. Todo mundo paralisado por alguns segundos.
Até que alguém apertou o "Play" pra todo mundo voltar à vida de novo...
- Aí, Professor! Vai lá, tenta a sorte! Se acertar todo mundo cai pra dentro da sala...
"Que maravilha!"
Só faltou lembrar de um simples detalhe: precisava acertar a bendita bola na bendita lata de lixo! E, se errar - que era a lógica - se prepara pra passar vergonha logo no primeiro encontro!
Mas não tinha outro jeito: cavou o buraco, se vira nos trinta pra sair...
- Até alguém acertar?
Pegou a bola, rodou ela nas mãos, ajeitou com carinho na junção do piso do refeitório. E rezou...
"Senhor, me ajuda a acertar!"
Bateu por baixo, com o lado interno do pé, na ponta do hálux - no popular: joanete - pra dar o efeito: ela subiu girando, fez uma parábola linda e foi morrer dentro da lixeira, sem nem encostar na borda!
"Ah, obrigado Senhor!"
E o filme parou de novo! Só o som do rádio no refeitório até alguém quebrar a inércia novamente.
- Caramba! O cara acertou, Brô!
- Tá tirando, Professor?
- Qual é, Professor? Tá enganando a gente?
- Se falasse que era boleiro, não ia rolar esse trato aí não, falei?
- Vixi, mano! Copiou que o Professor é canhoto?
- Isso aí não é de Deus não, maluco!
- Meus queridos! Agora quem fala "É o seguinte!" sou eu! E é o seguinte: todo mundo aqui é de Deus e tudo o que aconteceu aqui é de Deus. E aprendi com um grande amigo que "o combinado não é caro" e "o apalavrado tem que ser cumprido". Bola na lixeira: bora todo mundo pra sala!
E foram todos pra sala! A primeira vitória! Só que não! Era só um a zero e o gol de empate veio logo em seguida...
O Educador pegou o giz e começou a escrever seu nome na lousa.
- Ih, o Professor não é canhoto só pra chutar não! É da mão também!
- Aê, Professor! Qual que é essa fita aí que todo mundo fala que canhoto é do mal?
"Ai, caramba! Já vi que meu planejamento pra hoje já era! Mas uma oportunidade dessa, pra derrubar uns mitos, não dá pra deixar escapar..."
Tava com o giz na mão. Arremessou na direção da garrafa pet, cortada ao meio, que servia como pote. Passou longe!
- Tá melhor com o pé do que com a mão, hein Professor?
- Bom, pessoal! Esse lance do canhoto estar ligado à coisa ruim vem de longe. E da própria definição. Se de um lado a gente tem a direita - a correta, a certa, a perfeita, a boa - a gente tem do outro, obviamente, o contrário: a esquerda, a errada, a imperfeita, a má.
- E tem a própria etimologia da palavra!
- Etimo o quê? Traduz aí, canhoteiro!
- É a origem da palavra! E a de canhoto é "canho": que é mais hábil com a mão esquerda. Só que tem uma variação bem mais assombrosa, que por coincidência - será? - é a mais conhecida e "aceita": a do latim "canis", o cão...
- Ele mesmo, Professor? O diabo?
- Ele mesmo!
- Tá vendo? Não falei que canhoto é bicho do demônio?
- Bom, já que é pra chutar o balde, vâmo com força! Vocês sabiam que esquerdo, em espanhol, é sinistro? Funesto, assustador, desgraçado! E canhoto é "zurdo", que vem de "zurrun", que significa pesado, com sentido de grosseiro, desajeitado.
Pegou mais um giz. Lançou de novo pra tentar acertar o pote. Passou mais longe ainda...
- Eita, tô começando a ficar com medo!
- Em italiano, além de sinistro, esquerdo também é "storto", torcido, aquilo que não é reto e canhoto é "mancino", do latim "mancum", que indica um defeito físico, uma fraqueza, uma aberração.
- Pega leve, Professor! As "mina" tão apavorando aqui...
- As mina, né? Sei...
- Só mais essa, então: na França, esquerdo é "gauche", o que é estranho, tímido, atrapalhado, inseguro - vem de "guenchir", que significa vacilar - e canhoto é "gaucher".
- O vacilão! É você mesmo, Professor!
Viraram pra dois a um...
- Pois é, meu querido! Só que a gente precisa considerar que todas essas teorias foram formuladas em tempos em que o que valia era a "lei da maioria". Bora pros números? Canhotos não são menos que dez nem mais que quinze por cento das pessoas. Pra hoje tá OK, mas pro contexto da época em que tudo que era minoria ficava obrigatoriamente associada ao mal, a sentença tava mais que definida...
- Tô entendendo não, mas desenrola aí, pra gente saber qual foi que fez os "canhota" virar os "enviado do Belzebu"...
- Ignorância, meu truta! Ignorância! Por gentileza, não atrelar à burrice! Mas simplesmente procurar entender que fake news sempre fez parte da história da humanidade!
- A minha vó falava que canhoto é do mal porque o soldado romano que pregou Jesus na cruz bateu o martelo com a mão esquerda...
- Olha só, pessoal! Uma ideia aqui pra gente desenvolver: Jesus morreu por causa do canhoto que o pregou na cruz ou por conta da armação que aprontaram pra Ele? E que já tava planejada pelo Pai e combinada com Ele mesmo pra garantir nosso passaporte pra salvação?
- É, parece que não tem nada a ver mesmo...
- É, né? Se já tava tudo esquematizado, o que importa se quem cravou os pregos era canhoto?
Tudo igual de novo: dois a dois!
Mandou mais um giz pro potinho. Esse foi parar perto da janela...
- Verdade, Professor! Mas aqui, botando o Tico e o Teco pra trocar ideia, por que ninguém nunca mandou a real sobre os canhotos não serem filhos do "Coisa Ruim"?
- Ignorância, meu querido! O puro creme da ignorância! Na Idade Média, os canhotos eram queimados em fogueiras, condenados na mesma vibe das bruxas: satanismo! Felizmente, com o avanço da ciência, o pessoal sacou que a questão era genética e que não havia nenhuma relação entre os canhotos e o capeta...
- E se preparem que agora o bicho vai pegar: nos "antigamente", o coração era considerado o principal órgão do corpo humano, mas hoje tá mais que comprovado que quem comanda essa nossa "bagaça" é o...
- Cérebro, Professor! É o cérebro!
- Pois é, é o cérebro! E se eu bater pra vocês que o cérebro funciona com comando trocado?
- Que Mané, comando trocado, Professor?
- Comando trocado, meus queridos! A prevalência, ou seja, o lado do corpo que terá os membros dominantes, é determinada pelo lado oposto do cérebro: os destros possuem prevalência do lado esquerdo do cérebro e os canhotos, do lado direito. Então, quem são os perfeitos?
- Ah, Professor! Então vai querer mandar essa letra que os canhotos é que são os direitos porque o lado direito do cérebro deles é que tem essa tal de prevalência aí?
- É a real, mas também não adianta nada querer dizer que os canhotos sejam os "direitos", mesmo porque praticamente tudo ainda continua sendo feito pros destros: pensa na dificuldade que a gente tem de escrever nos cadernos com espiral! E com lápis, então: a gente vai escrevendo e sujando a mão! Pior, mas muito pior no tempo do calor: além da tattoo do grafite, os borrões no caderno por causa da mão - esquerda - toda suada...
- E pra abrir latas? E pra apertar e soltar parafusos? E a faculdade, que só disponibilizava duas carteiras universitárias pra canhotos numa sala com cem estudantes? Dois por cento de acessibilidade pra no mínimo dez por cento de demanda...
Mais uma tentativa: e o giz quicou na lateral do pote!
- Caraca, tio! Não tinha a menor ideia do basquete da "canhotada", tá ligado?
- E ainda tem que reconhecer os méritos dos canhotos que arrebentaram com uns feitos bem fora da curva: Aristóteles; Einstein; Da Vinci; Picasso; Darwin; Jimmy Hendrix; Newton; Mozart; Maradona; Alexandre, o Grande; Chaplin; Joana D'Arc (que inclusive acabou queimada na fogueira, condenada por bruxaria); Bill Gates; Michelangelo; Gandhi; Machado de Assis; Beethoven...
- Nossa, conheço quase ninguém desse bonde aí, Professor!
- Bom, galera! Se vocês toparem, a gente pode dar um rolê pela vida de todos eles! Só dar uma chance pra esse canhota aqui!
- Fala sério, mano! Eu é que não vou estudar essa rempa de maluco canhoteiro nem a pau!
- Nem se o Professor acertar o giz no potinho, tá ligado?
- Ah, se acertar eu topo! Já gastou toda a sorte do ano fazendo o gol na lata de lixo! Duvido que acerta o giz...
- Temos um acordo? Se eu acertar o giz a gente estuda os canhotos?
- Fechou, Professor! Tenta a sorte...
"Senhor, preciso da sua intervenção de novo: guia minha mão!"
Foi "o" lançamento!
Mais uma parábola perfeita e o giz caiu dentro do potinho, de chuá...
"Ah, Senhor, seu lindo!"
E o filme travou mais uma vez!
Três a dois pro Educador!
E foi só o primeiro dia!
Seguido de muitos outros...
Acabou que o Educador ficou contando história - e, modéstia à parte - fazendo parte da história, por mais sete anos, do Núcleo de Ação Comunitária Ormando Nochete.
E não ficou só na história, não! Teve muita ciência, teve muita cultura, teve muito estudo, teve astronomia, mitologia, matemática - sim, matemática, sim - e gramática e literatura e geografia do mundo e do homem, teve cinema, teatro e pintura, teve tudo e mais tudo pra alargar os horizontes de meninos e meninas espetaculares, talentosos, criativos, curiosos e questionadores, bem do jeitinho que todo ser humano, destro ou canhoto, tem que ser...