JOSÉ

JOSÉ

Às gentilezas dos

funcionários e funcionárias,

enfermeiras e enfermeiros

do Hospital Beneficência Portuguesa de Campinas,

os meus agradecimentos.

Local... Hospital. Rua 11 de Agosto...

Praça Luíz Vaz de Camões...

Lugares da minha infância.

Dois pontos eqüidistantes:

“Oficina Elétrica 11 de Agosto”, do papai: os odores da graxa, da gasolina...

Meu antigo lar: a mamãe e meus irmãos; o aroma da casa toda encerada, o perfume das madressilvas, o vasto gramado no quintal; mangas Ada e Bourbon...

À minha frente leio:

“Real Sociedade Portugueza de Benificência – 1873”.

Século XIX: a febre amarela, a população dizimada...

Atravesso a alameda central,

amparo meus passos

sobre o piso branco, de mármore... a escadaria.

Eu o reconheço!

é o mesmo material dos suntuosos

túmulos do “Cemitério da Saudade”... alvos mármores!

O hall de entrada, claridade...

As altas colunas, lá, bem lá em cima, o teto...

Numa parede, a escritura cravada na enegrecida placa de bronze;

os nomes e sobrenomes dos pais-fundadores:

doutores portugueses,

a epopéia da operosa colônia lusa...

Ó dor, ó dores,

o tempo e seus clamores!

Onde estão os nomes dos heróis construtores deste Templo? Os nomes, onde...?! Quantas verdades contidas na poética de Brecht! Brasil-Império... em quais livros? Proscritos... os operários, os pedreiros? escravos, “homens livres”?! a história e seus atores, os livros que não foram escritos. A história na noite dentro da noite...

O trabalho e o açoite, o tempo e o triunfo sobre a vida e sobre a morte.

... e os longos corredores, os tetos altíssimos em curvaturas, desafiadores, luzes artificiais: um labirinto; próximos ou distantes os ruídos da noite dentro da noite gritam aqui dentro de mim.

Chegada ao quarto.

Na cama repousa o corpo frouxo, desfalecido, esquecido...

Abro as imensas janelas.

Lá fora é dia, a Avenida Andrade Neves...

Avisto o prédio da antiga “Prisão”, onde, em tempos idos, os dementes da região eram trancafiados em seus porões...

Ó noite dentro da noite,

ó dor, ó dores,

o tempo e seus clamores!

Logo ali, o teto da Capela, do Hospital! de tão azul parece tocar o céu; o antigo necrotério. Em Finados de 1968, eu me recordo, o velório do vovô Manuel.

Hoje, apenas Capela e orações.

Minhas lições de filosofia... Walter Benjamin já previra com acerto!

O projeto da modernidade cria um abismo

entre os vivos e os mortos:

é preciso higienizar as paredes da eternidade...

A luz do sol queima as minhas visões do passado.

Me atiro na cama,

um paciente impaciente...

Ouço vozes, elas se misturam. Chegada e partida de

ambulâncias: ruídos, enfermeiros, gemidos, médicos, os aflitos, enfermeiras... a assustadora linguagem desarticulada da noite dentro da noite.

camacamaca... rumo incerto corredores labirintos luzes artificiais sala medo anestesia urgia!

Proteção doutor auxiliares é o Teatro-Cirurgia...

tudo por um triz!

Fecho os olhos,

respiração artificial...

dor, tremor, terror...

Duas claridades, explodem duas “claritas”...

_ Minha Ana!

_ Madalena me acena!

Convulso, clamo pela respiração natural...

Duas luminosidades!

Alúvio, desabo em aluviões, o real é um inteiramente Outro; duas visões, dois clarões, nascimento e morte, a noite dentro da noite e o triunfo do tempo...

Desperto!

Um encontro. Companheiro de quarto.

Um sussurro... diálogo árduo entre dois corpos expostos, feridos, puros-impuros a reivindicar a vida... odores, bexiga, sangue, urina, ossos, rins, orações e dores... matéria e espírito, tudo é Um.

_ Meu nome é José Francisco M.

Francisco... era o nome do meu pai.

As águas solenes do velho Chico, a vertigem, o encontro das águas do rio com as do mar. UTI do “Hospital Memorial de Petrolina”; o velho Chico e o bispo de Barra. D. Luiz Cappio em protesto, em jejum religioso... a noite dentro da noite.

_ Eu nasci em Maracaí, lá no “fundão” do Estado de São Paulo. Ah, que saudade da minha infância... peladas, jogos infantis, bolas de gude. Depois, mais jovem, fui para Presidente Prudente.

O encontro do ator com a própria história!

Superando a dor:

_ Eu vim para Campinas, em 1972! Morei no Jardim Santana, depois construí minha casa no Parque São Quirino. Construí minha família... Eu sou pedreiro! Construtor. Aposentado. Eu adoro Campinas, não saio daqui, não! Em 1994, eu retornei a Maracaí; hoje a cidade é toda ‘asfaltadinha’, antigamente, não! Era tudo terra...

Relembro as lições de Benjamin:

“Hoje, os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar a sua hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais. Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim, no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.”*

O encontro do pedreiro com o professor...

_ Construí a Unicamp, a Puccamp... Também construí na cidade de Capivari. Construí e reformei escolas!

Ali lecionei!

O encontro do construtor dos Templos com o construtor dos Saberes.

_ Também construí na cidade de Artur Nogueira...

Ali também lecionei!

_ A Lagoa do Taquaral, a estrada para Mogi-Mirim era estreita...

Ó tempo, tempo, na transversal dos tempos, vidas paralelas alinhavadas pela narrativa do pobre moribundo.

_ Sinto dores!

Pelos deuses, Átropos, deusa implacável! Não corte o fio da vida do velho narrador. Ele narra a dor... do nascer, do viver, do morrer. Permita que eu o ouça!

_ Eu sou pedreiro!

“ E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?” **

No combate entre a vida e a morte... o triunfo do tempo!

... e na noite dentro da noite ouço histórias bem tecidas, tramadas, costuradas, arrematadas, uma espécie de canto, o relato de uma vida inteira... tão límpido como uma bela e triste ária; ela não se cala... é Callas:

“ Ave Maria, piena di grazia, eletta,

fra le spose e le vergini sei tu;

sia benedetto il frutto, o benedetta,

di tue materne viscere, Gesú.

prega per chi adorando a te si prosta,

prega pel peccator e pel possente...

Prega per noi, per noi tu prega

sempre e nell’ora della morte nostra...

Nell’ora della morte, ave!” ***

Olho pela vidraça... amanhece. Conheço outras histórias que jamais se esquece.

_ Você recebeu alta?!

“ E agora, José?

Sua doce palavra...

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, para onde?”

Entre adeuses, aos deuses, adeus, a Deus!

Deixo o quarto, os corredores, as luzes artificiais...

Repentinamente, eclode a luminosidade da manhã primaveril, quase-verão!

O saguão do Hospital...

Em seguida, atravesso, vagarosamente, os jardins... Ali, a praça iluminada!

Luz! Luíz Vaz de Camões...

É dia, euforia... ria para o dia! sim, mais um passo, outro passo e pronto!

Alcanço os lugares da minha infância!

Acho graça e me recordo... da Escola, do Ginásio, do Colégio. Currículos. Sermões professorais. Corais. Lições de Poesia. Camões:

“ As armas e os barões assinalados,

Que da Ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca de antes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana...

Cessem do sábio Grego e do Troiano...

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta...” ****

_ Táxi!

_ Para onde?

_ Para o meu lar, para Ítaca!

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NOTAS

* BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. v.I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1985.

** ANDRADE, Carlos Drummond. Nova Reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.

*** CALLAS, Maria. Verdi, Arias. Orchestre de la Société dês Concerts du Conservatoire. Dirigent Nicola Rescigno. EMI Records Ltd., 1997.

**** CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Introdução e notas Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

Prof. Dr. Sílvio Medeiros.

Campinas, é NATAL de 2007.