Espelho branco

Meses atrás, encontrei um cabelo branco perdido entre as madeixas. Minha reação foi bem óbvia: arranquei-o quase que imediatamente da minha cabeça, afinal de contas, 30 anos não combinam nem um pouco com cabelos brancos.

Mas ele voltou. Ou melhor, eles voltaram. Arranquei um, nasceram dois. Arranquei os dois, vieram quatro. Seria um complô da natureza? Uma rebeldia do meu DNA? Não faço a mínima ideia.

Voltei às minhas origens, forcei a memória e não consegui lembrar de NINGUÉM na minha família com cabelos grisalhos no auge dos 30 anos - será que já pintavam e a minha vida inteira foi um remake do Show de Truman? Céus!

Sem o resgate da memória, recorri ao Google. Descartei a primeira hipótese que ele sempre traz quando o assunto é saúde: não é um sintoma de câncer. Ufa! Aliviada, segui focada na minha busca. "cabelos brancos aos 30" - Google pesquisar... Inúmeros sites com inúmeras teorias científicas para inúmeras curiosidades diferentes.

Ok, me conformei em saber que não tinha nada de "errado" comigo. A genética nem sempre é amiga, e entendi que aos 30 a montanha-russa da vida já começa a descer com tudo. Adrenalina total a 250 km/h, nem o pigmento dos fios aguenta tamanha pressão.

Voltei para a frente do espelho e olhei novamente os cabelinhos brancos. Mais grossos que os outros. Mais brilhantes também. Até achei-os mais charmosos do que da primeira vez e decidi assim contemplá-los.

Uma sensação surpreendentemente boa. Lembrei dos grisalhos da minha avó e do processo de envelhecimento da minha mãe, que só começou a ter cabelos brancos aos 50. Lembrei da gratidão de vê-las envelhecerem e lembrei que esse processo já vem me abraçando há três décadas. 30 anos, um espelho e alguns cabelos brancos me trouxeram a essa crônica da vida real. Adoro falar sobre o tempo enquanto o tempo corre e me oportuniza a dádiva de falar sobre ele, todo soberano, nessa metalinguagem.

"Batidas na porta da frente, é o tempo!", já dizia Nana Caymmi. Eu também bebo um pouquinho para ter argumento de falar sobre ele. E o que poderia me dar mais propriedade para falar sobre o tempo do que o próprio tempo e esses cabelinhos brancos e faceiros que insistem em chegar?

O tempo: a montanha-russa mais veloz da vida. Àquela que desperta um frio descomunal na barriga, permite que os assentos sejam preenchidos por pessoas que valem a pena levar na viagem e completa o percurso tão brevemente, mas suficiente para se difundir na memória e nas lembranças - sejam elas boas ou não.

Sim, este é mais um texto sobre o tempo. O meu tempo que é diferente do seu - que já pode ter ou não cabelos brancos. Que pode ou não ter pintado os cabelos. E que pode ou não concordar comigo. Paciência... o tempo também me ensinou a experimentar a delícia de não me importar tanto assim.

Um brinde ao tempo, aos cabelos brancos - pintados ou não - e à oportunidade de enxergar o mundo pelos vidros de cada ampulheta herdada. Há coisas na vida que o dinheiro não paga, e envelhecer com sensatez com certeza é uma delas.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 28/10/2023
Reeditado em 28/10/2023
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