CABO CHINA

Era um senhor que não vivia para viver , vivia para morrer de pinga . Daquelas pitorescas figuras que nunca chegou a ser soldado , mas tinha vontade de o ser : andava com fardamento de soldado da polícia , o que uma vez lhe causou sérios apuros com a polícia e , seu fardamento , ostentava duas divisas como se ele fosse um cabo . Já tinha a barriga imensa de uma cirrose hepática e sempre naquele ritmo de levantar-se de madrugada e sentar-se na porta da bodega do seu Neco . Às vezes nem dormia e fingia ser guarda noturno às quintas e sextas-feiras para no sábado arrecadar uns cruzeiros pelos arredores nas casas que havia apitado seu apito de jogo de futebol . Foi por isso e pelo rosto já inchado pela "mardita" que o apelidaram de Cabo China . Chegava às quintas-feiras e sextas-feiras , se ouvia o assovio do apito de juiz de futebol bem longe e depois bem perto . Depois um converseiro entre eles e seus ajudantes . Passavam distante e se perdiam no silêncio do pacato bairro . O cabo estava na área e não havia marginal bravo que ele não colocasse para correr , segundo seus relatos nas rodas de cachaças . Aos sábados, ele e um séquito de pés-inchados batia na porta do povo querendo o pagamento da guarda desarmada do bairro tão tranquilo que até se sentia tédio com a rotina . Nada acontecia e às segundas , terças e quartas-feiras nada se ouvia nem os latidos dos cachorros e nem os assovios do apito do Cabo , nem as conversas entre o Cabo e sua trupe. Tudo transcorria bem até a quinta-feira e numa paz de fazer coveiro se arrepiar .

Foi numa segunda-feira , dia de descanso do Cabo China que a notícia sobre ele se espalhou : o Cabo estava moribundo e já estava há dias colocando sangue pela boca e também quando ia ao cagador fazer suas necessidades . A população começou a visitar o cabo . Ele deitado numa rede na sala e os colegas na calçada com uma garrafa de Engenho do Meio e uma laranja cortada em vários gumes e o Cabo , da rede onde estava , olhava com aquele longo olhar para a garrafa e para os amigos os quais ficavam como recepcionista sentados na calçada ao redor da garrafa como se esta fosse um ídolo e eles os crentes fiéis . Um deles falou :

--- Coitado do Cabo . Olha só o olhar dele pra gente !... é amigo, para onde você vai não vai sofrer mais !

Deixa que o olhar do Cabo era para a garrafa da "mardita" e com mais umas horas o Cabo deixou de respirar , desmaiou de fraqueza e foi aquele fungado triste entre seus companheiros de farra e os poucos conhecidos , duas ou três bondosas pessoas ,pois o Cabo era sozinho e seu único filho tinha ido para o Rio de Janeiro . Não tinha esposa nem parente nem aderente , como se diz no Nordeste . A casa iria ficar para quem quisesse morar até o Zé Antonio Voltar do Rio de Janeiro e se não Voltasse ficaria com o invasor .

Foram comprar biscoito e café para passar a noite no velório e não esqueceram a pinga dos pinguços com o dinheiro da vaquinha feita pelos visitantes . Era umas dez da noite e os poucos amigos e vizinhos mais chegados do Cabo sonolentos com o avançar das horas contavam causos , ou inventavam brincadeiras para passar o tempo até o raiar do dia. Se contava nas mãos quem havia ficado no velório . Estava quase amanhecendo . Foi que de repente a rede em que o Cabo estava se mexeu e todo mundo olhou para lá . A rede parou de mexer e todos ficaram com as orelhas em pé imaginaram ser um pé de vento que entrara pela porta dos fundos da casa de taipa . Ninguém foi olhar ,mas de repente aparece o Cabo China na porta da frente dizendo:

--- Bota uma pra mim aí !

Meu amigo ... Não ficou um pra servir ao suposto morto . Quem não podia correr por causa da cachaça ficou bom num instante e correram feito coelhos .

O Cabo ficou olhando seus amigos correndo e sentou-se na calçada , pegou a garrafa e matou a sede com uma golada de cachaça daquelas como nunca havia tomado . Estava com sede e ficou olhando a noite sem saber o que havia acontecido . Ele não durou muito ,depois dessa vez . Uma semana depois , morreu de verdade e quem disse que houve alguém para fazer velório?

PORTO VELHO : 03/11/2023

Professor J Silva
Enviado por Professor J Silva em 03/11/2023
Reeditado em 05/11/2023
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