Espelhos e pedras

Te beijo levemente como o ar dentro do meu corpo. Te beijo com todos os meus órgãos. Uma espécie de som aumenta. estou em todos os cantos da minha vida e em todos eles lhe sinto comigo. Faço tudo numa memória sem tempo, senão não dura. Existir não dura. Estou finalmente feliz de não estar no meu corpo e continuo neste beijo antes que ele se arrebente. Teu rosto eu lembro bem. A sensação da sua boca é que tem o beijo de outras bocas e a sua pele vem se fundindo com a pele de outra pele. Passos e sons de trabalho e cadeiras arrastando e ônibus partindo atravessam seu corpo e me beijam também. Seu contorno agora delimita ausência. Você está no mundo e eu te observo de cima da ponte no Dragão do Mar. Sei prever todos os seus incidentes, sei o que vai acontecer. Observo chegando de longe, percebo que sei que vai chegar antes que você mesma saiba. Aceito o seu destino por você. Quando desço, ciente de tudo, e lhe encontro entre as pessoas tenho a identificação de um espelho entre todos os rostos que passo. Também sou um espelho. Cabeças espelhos de bordas laranjas de feira, corpo suporte. Só vou te tocar realmente no dia seguinte. Talvez na música seguinte já tenha raspado em você, mas apenas no dia seguinte te toquei, te beijei. Na boca de outras pessoas. Agora todas são opacas. Nenhum brilho. Agora todas são foscas. Nenhum reflexo. Estou sozinho entre pedras, cabeças pedras pontiagudas e empoeiradas, corpo suporte. Sacrifico toda a leveza do ar dentro do meu corpo, entrego todos os meus órgãos em troca de te ter alí. No dia seguinte vejo as pessoas espelhos e as pessoas pedras em um confusão de cacos na rua que se misturam a uma lama esquisita de uma chuva esquisita num dia abafado. Não aguento uma chuva. O beijo que eu inventei que você me dava não aguenta o tempo.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 29/11/2023
Reeditado em 18/12/2023
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