Tradições

O ano vai chegando ao fim. Tradicionalmente, as pessoas que conheço viajam para Guarapari, organizam novenas, prometem o que não cumprirão, se entopem de rabanada e peru e lentilha e panetone, montam árvores (algumas tão pavorosas que me pergunto como o Noel ainda deposita presentes ali). Nas repartições, burocratas planejam confraternizações, onde se empanturrarão de churrasco, farofa e vinagrete, e beberão como se não houvesse amanhã. Enfim, como diz o outro, tem gosto pra tudo.

Como eu disse noutra crônica, a cada dia fico mais parecido com o Raul: aprendendo a ser louco, um maluco total. Contudo, também cometo certas idiossincrasias. Uma delas: devoro um chocotone enorme e, ao cabo, lambo dedos e beiços para, quem sabe, brotar outro em meu colo. Dava certo com o papel dos presentes no aniversário: jogando-os debaixo da cama, sempre ganhava mais presentes. Com o chocotone, ainda não deu certo. No entanto, continuo insistindo, como insistem alguns conhecidos em vestir branco na virada do ano.

Outra de minhas tradições – e, creio, de uma legião de súditos: esperar, ansiosamente, o Roberto Carlos. Desde novembro, começo a pesquisar no Google quem são seus convidados, o repertório do show, onde foi gravado… Navegando como um descobridor português, acabo sempre atracando no porto da saudade. Ali, desembarco, miro o horizonte: vejo além dele imagens doutros tempos.

Nos tempos anteriores à internet, para conseguir aquelas informações, eu precisava adquirir o Caderno da TV, que saía aos domingos n’O Globo. Ou esperar a chamada durante os intervalos dos programas. Tempos de menos informação, de mais encantos. Talvez por isso mesmo, inesquecíveis.

Assim como não me esqueço: comprava, meses de antecedência, uma fita para gravar o Especial. Foram anos e anos marcando na agenda, esperando a novela das oito terminar para apertar o REC no videocassete.

Escrevendo o parágrafo anterior, senti a brisa da nostalgia revolver as memórias. Como o cabeçote do videocassete, fez um chiado e, sem querer querendo, deu o play. Agora desfilam apressadas pelas retinas, feito um filme do Chaplin, imagens de minha juventude, das VHS empilhadas na estante, da programação da tevê recortada do jornal, de ‘tantos sonhos feitos em pedaços’ pelo implacável Sr. Tempo.

Se, por um lado, este Senhor jogou para escanteio as fitas, os videocassetes, as tevês de tubo e os jornais impressos, por outro, trouxe novas tecnologias: o streaming e o Youtube permitem ver e rever os especiais do Rei a qualquer hora, o ano todo.

E, quando o vejo, majestoso, na tela da minha Philips, não deixo de recordar: no Nilson Nelson, em Brasília, recebi de sua mão uma rosa vermelha. Acho, já comentei sobre esse momento lindo nalguma crônica… às vezes, me pego repetindo temas e lembranças. Caduquice, indago aos livros na estante. Eles permanecem em silêncio; eu, com minhas inquietudes. Nessas horas, recorro à televisão: alguém sempre está falando qualquer coisa.

Todavia, quando me sinto farto do silêncio livresco e das baboseiras televisivas, olho a parede. A imensidão branca me acalma: imagino que é um enorme bloco de gelo vindo em minha direção para afastar esse calor dantesco.

Neste exato momento, encaro mais uma vez a parede. Mentalmente, conto quantos dias faltam para o Especial do Roberto Carlos. De repente, uma barata cascuda e asquerosa invade o quarto. Como ousa, sua sacripanta! Sem esperar resposta, dou-lhe uma chinelada. A bicha estremece, contudo, resiste. Outra chinelada. Mais outra, para garantir. A invasora jaz aos pés da cama. Torno a olhar a parede: mais tarde, com o chinelo, empurrarei seu cadáver nojento à varanda e, com um chutão pelé, o lançarei na escuridão da noite.

Mas, como eu dizia, voltei a olhar a parede. Minhas vistas acompanham a rachadura, sobem até o topo do guarda-roupa, onde repousa uma caixa de pinus. Ao longo dos anos, ela guardou tanta coisa: brinquedos, revistinhas, chaveiros, adesivos, lápis de cor; hoje, preserva fotografias. E, o que poucos sabem, uma relíquia: a rosa que recebi do Roberto. Murcha e seca, todavia, intacta. Quer dizer, intacta em termos: ao sair do ginásio, uma dona, vendo que eu levava a rosa feito um troféu, me cercou pedindo uma pétala… pediu com tanta sofreguidão, um certo desespero até, que cedi: arranquei uma petalinha. Ela se foi, saltitando igual a Tieta nas dunas do Mangue Seco. Eu entrei no táxi.

A rosa vermelha, que hoje não é mais tão vermelha, resiste ao tempo, como outras tantas lembranças. Não fossem estes livros aí na estante me perscrutando o tempo inteiro, eu treparia no tamborete, abriria a caixa, me entregaria sem pudor à Senhora Nostalgia.

Um desses indiscretos perscrutadores é o A Descoberta do Mundo. Nele, Clarice comenta que folhas sempre caem em seus cabelos. Quando li isso, imaginei-a flanando pelo Leme, a brisa lhe entregando tais bilhetinhos... Afinal, como diz a canção do Roberto, “folhas são bilhetes deixados aos homens do nosso tempo”. Na crônica, a escritora confidencia que recolhe tais delicadezas que Deus lhe concede. “Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança.”

A mim, contudo, me interessa manter guardadinha a rosa que ganhei. Fetiche? Rotulem como quiser: a rosa segue na caixa. Livre do vento que bate a porta do quarto, longe das patas imundas duma barata desclassificada, a salvo do silêncio constrangedor dos livros. Sobretudo, protegida de mãos que, por ventura, queiram tocá-la e, desastrada ou dolosamente, destruí-la.

O ano vai chegando ao fim. Do nada, me pego a pensar em coisas sem nexo. E, o que é pior, a escrever coisas sem nexo. Porém, é melhor escrevê-las que montar árvores pavorosas, viajar para praias lotadas, encher a cara e dar vexame nas confraternizações que os burocratas insistem em realizar. Afinal, todos têm a sua tradição. Inclusive os burocratas.

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 17/12/2023
Reeditado em 17/12/2023
Código do texto: T7955817
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.