NA SECA NORDESTINA, URUBU VIRA GALINHA

NA SECA NORDESTINA, URUBU VIRA GALINHA

Moacir José Sales Medrado[1]

 

No sertão nordestino, a seca não é apenas um fenômeno meteorológico, é uma realidade que redefine a vida. Em 2023, inúmeros municípios foram assolados por estiagens severas, afetando profundamente tanto a agricultura quanto a pecuária. Especialmente impactados são os pequenos agricultores, aqueles que, apesar de seu profundo conhecimento das espécies forrageiras arbóreas e arbustivas do semiárido, enfrentam uma luta desigual sem recursos ou infraestrutura adequada.

 

A caatinga, esse bioma único que se estende por uma vasta área incluindo dez estados, é tanto vítima quanto testemunha desta tragédia. Em tempos de seca extrema, a situação torna-se tão desesperadora que o urubu, em sua astúcia de sobrevivência, não precisa mais voar - basta andar de uma carcaça a outra. Este cenário macabro simboliza a crueza da realidade que muitos enfrentam.

 

Intriga-me, todavia, a presença de inúmeras árvores verdes - um contraste vívido contra o cenário de aridez - que permanecem inexploradas para alimentação. Aqui reside uma questão latente: por que não utilizamos mais eficientemente estas espécies arbóreas e arbustivas? Espécies como catanduva, sabiá, catingueira, umbuzeiro, juazeiro, mororó, jurema preta juntamente com as já quase naturalizadas algaroba, gliricidia e leucena. Vale ressaltar, além das árvores e arbusto, nossas  cactaceas  nativas mandacaru e facheiro e a exótica "palma forrageira" que possuem um potencial imenso para mitigar os efeitos da seca.

 

Porém, a realidade é mais complexa. Em visitas ao interior da Paraíba, me deparei com o paradoxo do descaso para com essas espécies nativas. Um amigo, criador de ovinos, revelou-me um ponto crucial: muitas destas plantas são espinhosas e, portanto, consideradas inadequadas para alimentação animal. Este desafio, contudo, deveria ser uma convocação para a inovação científica e tecnológica, não um obstáculo intransponível.

 

O que falta, talvez, seja um olhar mais atento e recursos mais robustos direcionados à pesquisa. O Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária e, em especial, a Embrapa, necessitam de investimentos para explorar o potencial das leguminosas do semiárido, com um foco especial nas espécies endêmicas da caatinga.

 

Além da pesquisa, é essencial um apoio efetivo aos agricultores nordestinos, em especial do semiárido. Programas que realmente atendam às necessidades locais, como a construção de barragens subterrâneas, cisternas, e o aprimoramento de técnicas de manejo de forrageiras tolerantes à seca, são vitais. A assistência técnica precisa não apenas ensinar, mas também aprender com aqueles que vivem e respiram a realidade do semiárido. Polos agroflorestais com recursos para agroindustrialização, treinamento e apoio à comercialização, são, também, essenciais.

 

Em tempos de seca, a vida se transforma e exige de nós não apenas compaixão, mas ação. "Na Seca Nordestina, Urubu Vira Galinha" não é somente um título; é um lembrete da nossa responsabilidade para com aqueles que enfrentam diariamente os desafios impostos por um clima implacável

 


[1] Engenheiro Agronômo (UFCE), Especialista em Planejamento Agricola (SUDAM-SEPLAN Ministério da Agricultura), Doutor em Agricultura (ESALQ/USP), Pesquisador Sênior (EMBRAPA-aposentado), Proprietário da Empresa Medrado e Consultores Agroflorestais Associados.