ENFIM, LIVRE!

Era um velho sapeca. Os 80 anos lhe presentearam com cuidadoras 24 X 7, com a alegação dos filhos de que era mera cautela para evitar qualquer perrengue. As mocinhas, estavam sempre atenciosas e até carinhosas, não chegando aos pés da esposa, que tinha atendido ao chamado de Deus há 9 meses e deixado um vazio irreparável na sua alma. A Nice, mocinha do dia, foi ao banheiro depois que ele jurou solenemente que ficaria quieto e bem sentadinho. A chave esquecida na porta, fato nunca acontecido antes, era a deixa para experimentar a liberdade dos tempos passados, quando ia e vinha sem dar satisfação a ninguém, nem tampouco para a então patroa, querida companheira por quase 60 anos. Era agora ou nunca. Levantou da cadeira com surpreendente agilidade, destrancou a porta sem fazer ruído e abriu, sentindo o vento roçando o rosto e lhe mandando ir embora o quanto antes. O som dos carros e as pessoas andando na rua criavam uma cena que nunca tinha visto sem alguém do lado, seja filho, neto ou acompanhante. Foi andando sem rumo, sem medo, sem culpa. Tinha que caminhar com agilidade, porque o xixi da Nice já devia ter acabado e logo sairiam ao seu encalço, armados de uma enxurrada de broncas pela travessura da fugida de casa. O risco de ser recapturado foi o néctar para aumentar a velocidade e ir se embrenhando pelas ruas do bairro, feito garoto fugindo da sova da mãe, nos bons tempos em que as mães podiam dar sovas nos filhos quando aprontavam algo que merecesse algumas palmadas. Aquele esforço, mesclado com a emoção por sentir as carícias do voo solo há tempos tão distantes, foi demais ao seu coração, que entrou em pane e travou de vez. Logo viram seu corpo caído e chamaram o SAMU, chegando em 7,5 minutos e fazendo tudo para reanimá-lo - em vão. Na funerária, os responsáveis para tanatopraxia, procedimento usual que deixa o defunto bem apresentável no caixão, notaram um fato raro naquele corpo: o sorriso no rosto. Pensaram em fazer algo para lhe dar uma expressão mais séria, digna de velho aos 80 anos, mas decidiram deixá-lo como estava, como espécie de tributo à felicidade ostentada e assim foi exposto no velório, gerando comentários de todos familiares e amigos. Alguns até diziam que o tinham visto dar uma piscada de olho, especialmente a neta preferida, Júlia, de 12 anos, de quem o vô nunca se desgrudava e para a qual, certamente, teria dado um adeus todo especial.

 

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 06/01/2024
Código do texto: T7970064
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