Uma boa mira, mas um tremendo azar...

Não é falta de assunto não! Muito pelo contrário, estava aqui pensando se escreveria ou não, e resolvi por escrever, afinal, é um assunto interessante e um fato que não posso deixar de contar.

O dia começava bem, com um pãozinho francês engraxado com margarina “Matarazzo” (hoje não existe mais), e um copo daqueles todo cheio de nervuras e bem gordinho (parecia um copo americano estufado), cheio de café fresquinho mesclado com leite. Esse era o café da manhã que minha querida avó “Lála” sempre providenciava para nós quatro.

Depois do café, era fato que eu e meus dois irmãos “Deda” e “Totai”, o primeiro mais novo do que eu, e o segundo, mais velho quase dois anos, ganhávamos a rua para montarmos nossas brincadeiras, que iam de “Mãe da Lata” (Uma espécie de Esconde-Esconde), até a “Pelada”, com bola de “Capotão” (bola de couro) e tudo. Eu tinha 6 anos de idade, e já havia um ano que estava na escola primária.

O irmão Saulo, não raramente participava de nossas brincadeiras. Era o “Dedo-duro” da turma, pois sempre que podia, nos dedurava para mamãe, e ficava de lado observando os que havia dedurado, apanharem surras homéricas. Esse é um outro tema que ficará para uma outra vez.

Eu gostava de ler bons livros e todas as revistinhas em quadrinhos que tínhamos, e eram muitas. Passávamos horas em leitura silenciosa, viajando nas aventuras dos super heróis e nas hilárias estórias do “Tio Patinhas”, “Donald e sua turma” ... Quando não estava com as revistinhas em quadrinhos, lia as obras de “José Mauro de Vasconcelos” e “Monteiro Lobato”.

Na rua brincadeiras mil, sempre com garotos e garotas da mesma faixa etária, éramos muitos, formávamos turmas para as brincadeiras. Até a tal de “Amarelinha”, todos pulávamos, e posso dizer que não tinha nada demais nisso.

Havia uma brincadeira em que eu e “Kimi”, uma japinha de mesma idade, e nós sempre ganhávamos a dianteira para a turma, era a tal de “Bandeira”, uma brincadeira de conquista de uma bandeira improvisada para cada time. Saudade dessa prática tão saudável...

Mas o assunto é bem outro. Nunca iria imaginar, naquele dia tão bom que estava a começar, que iria ocorrer algo fora de sintonia, pois nada havia acontecido de ruim, até então.

- Maneco! Venha já aqui! – Gritou minha mãe, do portão.

Eu, prontamente, e em desabalada carreira, logo estava em posição de sentido à sua frente.

- Toma, esse dinheiro, é para comprar 1 quilo de braço (carne de segunda), moído viu?! Vá la no açougue do Romeu, um pé lá e outro cá, ouviu?! Fala pra ele moer duas vezes, entendeu?! Hoje vou fazer pastéis, anda logo!

Saí feito louco, me sentindo o “Flash Gordon”. Nem olhei o dinheiro já enroladinho na mão fechada. Vencendo obstáculos imaginários e fazendo curvas, que na minha mente eram fechadas e cheias de buracos imensos, lá ia eu correndo em desabalada carreira.

Mas essa minha mente fértil, seria chamada à razão em um súbito e terrível fato, que de repente me fez ficar muito preocupado.

Foi um tremendo desacerto, pois ao correr e driblar as valas e buracos feitos pela SABESP, para canalização de esgoto, todos bem fundos, com uns três a quatro metros, nas calçadas e nas esquinas, onde se encontravam, agora já círculos, com mais ou menos uns três metros de diâmetro, e os mesmos três metros de fundura, cheios de lama cor de rosa, e muito fina, iria ser o palco do desenrolar dessa história.

Ao correr, e desviar das valas, pra lá e pra cá, acabei derrapando e caindo de lado, quando então a minha mão se abriu e o dinheiro que levava, foi parar dentro do buraco redondo, fundo e grande da esquina.

Fiquei apavorado! Não sabia como iria pegar a grana, que naquele momento se abriu e pude ver se tratar de uma nota de CR$ 50,00 (Cinquenta cruzeiros).

Naquele instante, só me passava pela cabeça a tremenda surra que fatalmente me esperava, pois minha mãe, não iria perdoar, era mestra no assunto surra.

Parei, olhei pra todos os lados, e nada, não havia meios de alguém me ajudar, pois não tinha ninguém na rua. Pensei em como faria para apanhar a grana, e pronto, a mente viajante mais uma vez se fez presente.

Imaginei que poderia fazer uma lança com galho de uma árvore e acertando a grana, a lança iria perfurar a nota e eu a puxaria pra cima. Pronto, estava decidido, seria na tentativa e erro.

Passei a procurar um galho bom e uma linha de pipa, pois sempre havia isso pelas ruas, a molecada fazia o tal de “berimbau” para apanhar pipas presas nos fios e nos galhos das árvores. Logo achei o galho e a tal linha, então fiz uma boa ponta no galho quase reto, e amarrando uma linha neste, agora a “minha lança”, que havia afiado a ponta no poste da “Light”, iria ser a salvação.

Por alguns minutos fiquei olhando para o dinheiro preso na lama fina, e em dado momento, me sentindo um caçador saído do livro “Três escoteiros em férias no Rio Paraguai”, que acabara de ler, atirei a lança e bingo, acertei a grana. Mas para minha decepção, a lança não furou o papel de valor, e o afundou na lama fina. Estava danado mesmo! Foi nesse momento, que me sentindo o super herói das revistinhas em quadrinhos, pulei dentro do buraco, e fiquei atolado até a cintura. Vasculhei a lama, peguei a grana, e a coloquei no bolso da minha bermuda. O problema da grana já era, o dinheiro estava a salvo em meu bolso. Foi nesse momento que me dei conta do risco que ali estava correndo, atolado até a cintura. Lama fina e de cor rosada, quase ensopada e eu ali, não afundava mais, porém não conseguia sair, era como se alguma coisa me puxasse para baixo. Comecei a ficar em pânico, pois não sabia o que fazer! Comecei a gritar socorro, e nada. Gritava socorro e completava sempre dizendo que estava no buraco, preso na lama, mas de nada adiantava...

Passados uns 30 minutos, eu exausto e quase sem voz, gritava o que podia, a garganta seca não ajudava em nada. Meus pensamentos eram na tremenda surra que fatalmente iria ter que enfrentar. Talvez fosse melhor ficar ali mesmo, mas isso não seria o certo, então conseguia mais um pouco de energia e tornava a gritar...

De repente uma cabeça apareceu na beirada do buraco, era um homem de óculos e logo gritou pra que eu ficasse calmo, pois iria buscar uma escada para me tirar daquele buraco, que pra mim, já havia se tornado uma tremenda cratera.

O homem demorou alguns minutos, e quando chegou, eu olhei pra cima e pude ver a escada descendo em minha direção, mas também notei inúmeras cabeças me olhando, todos assustados e com os olhos arregalados, me olhavam espantados. Confesso que me senti um bicho saindo da lama, talvez um monstro, sei lá...

Logo estaria fora do buraco, e poderia ir buscar o quilo do tal “Braço”, como era chamada a carne de segunda.

Ao me virar para ir em direção ao açougue, logo senti em meu braço uma tremenda mordida, e não era de bicho nenhum, eram as unhas de minha mãe, cravadas em meu antebraço.

Fiquei paralisado por alguns minutos. Não chorei não, apesar de sentir vontade por várias vezes quando no buraco e sem qualquer ajuda, fiquei bem estável, mas com a mordida das unhas, fiquei morrendo de vergonha dos coleguinhas e das pessoas que me olhavam.

Fui arrastado pra casa, sempre com as unhas cravadas em meu braço, jamais esquecerei do sangue que se misturava à lama cor de rosa, agora tingida de vermelho...

Ao adentar em casa, fui espancado por uns 10 minutos. Cintadas com o talabarte do meu pai, que era da polícia. Doía muito cada lambada e sendo segurado com as unhas cravadas em meu braço, que poderia ser chamado de bracinho.

Minha avó, que não aprovava essas atitudes da filha dela, minha mãe, logo interviu, e mais uma vez, fui salvo das garras dela, e das lambadas nada agradáveis.

Fui levado ao banheiro, colocado em uma bacia de zinco gigante e esfregado com bucha, pela minha avó, meu anjo protetor. Logo estaria me penteando em frente ao espelho, cheiroso, e todo cheio de vergões e furos no braço, mas estava em casa, a salvo.

Pensando na excelente mira que tive, fiquei orgulhoso de mim, mas pelo tremendo azar, isso ficou marcado, uma lição.

Posso dizer que nem sempre acertar no alvo faz bem e traz vitória, porque nesse caso, trouxe muito azar, sem os pasteis, e com surra de cinta muito dolorosa...

 

Claudio Falcão

(Contando histórias)

19/01/2024

 

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 19/01/2024
Reeditado em 11/04/2024
Código do texto: T7980129
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.