O governo sabe usar o seu dinheiro; você não.

Em um bar perto da sua casa, uma pequena multidão, ao balcão e às mesas, entre um gole e outro de cerveja, a lambuzarem-se com um tira-gosto, olhos presos na televisão, entre os gritos enraivecidos "Juiz ladrão!", "Perna de pau!", "Pênalti!", "Deixa de firula, vagabundo! Passa a bola!", comentava, com superlativos, com interjeições, com argumentos sólidos, com galimatias, a política nacional, a de ontem, a de hoje, a de amanhã, a de sempre:

- Os políticos são uns grandíssimos pilantras.

- Mais do que grandíssimos, grandessíssimos.

- E ponha grandessíssimo na história.

- Eles se refestelam, banqueteiam-se; na mesa deles, do bom e do melhor.

- E têm serviçais para darem-lhes a comidinha na boca. Os caras não movem um dedo nem para segurar o garfo e a faca.

- E não limpam o prato, nem o copo, nem os talheres que usam, que sujam.

- Nem lamberem o prato os sem-vergonhas lambem.

- Os piores políticos são aqueles que prometem mundos e fundos ao povo e, depois, deixam-lo a ver navios.

- Verdade. Verdade verdadeira.

- Ó: tem quem compra as mentiras dos políticos, não tem?! A arte da política, já dizia o filósofo grego, é a de mentir, a de engabelar o povo. Político que é político mente, mente pra dedéu. Quem quer acreditar no que eles dizem, que acredite. Sei disso porque meu avô, o pai de meu pai, de cada quatro histórias que contava, cinco eram mentiras, histórias que ele inventava. E ele foi vereador durante não sei quantos mandatos.

- Seu pai era pescador.

- Também. Um híbrido de pescador e político. Em outras palavras: um tranqueira dos infernos que dava nó até em pingo d-água.

- E encheu o bolso.

- Se encheu! Ele, mesmo, dizia, aquele desavergonhado, que havia, no tempo dele, muita comedeira. E tirou o dele, o pilantra. Fez a fortuna da família.

- Além de mentir, sabem os políticos cobrar impostos.

- Cobram impostos, e dizem que administram, como se fosse deles, o dinheiro do povo.

- Neste caso, eles dizem a verdade.

- De um certo modo, o dinheiro é deles, mesmo.

- É do povo o dinheiro.

- Que dinheiro?!

- O dos impostos.

- Você nasceu ontem?!

- Se o dinheiro dos impostos é do povo, e se você é um homem do povo, então vai lá e pegue o seu quinhão.

- Grandessíssimos patifes, os políticos, com a lábia da serpente do paraíso, convencem muita gente de que eles, e só eles, sabem fazer bom uso do dinheiro que eles ao povo arrancam via impostos e taxas e emolumentos e dízimos e brindes e gorjetas.

- Só querem saber de sombra e água fresca, e muita grana no bolso, para si mesmos e para os familiares, os parentes, os amigos, as amantes, os amigos dos amigos, os maridos das amantes. São uns diabos de tão ladinos. Praticam a xenofobia em favor de quaisquer pessoas que estejam no seu raio de influência, concedendo-lhes sinecuras, favorecendo-lhes a inata vagabundagem.

- Nepotismo. Você quer dizer nepotismo. Xenofobia é outra história.

- É o ódio das pessoas pelos alienígenas.

- Alienígenas?! Do que você está falando, maluco?!

- De xenofobia! Do ódio das pessoas pelos alienígenas.

- De que planeta você veio, corinthiano?! Xenofobia nada tem a ver com alienígena. Você está confundindo alhos com bugalhos. Xenofobia é ódio aos mexicanos.

- Vocês viajam na maionese. Bestas! Xenofobia não é nada disso. Xenofobia é outra coisa.

- Que asneiras vocês estão falando! Vocês são meio bestas.

- Mas falando dos impostos... E dos políticos populistas, demagogos, que dizem que eles, e só eles, sabem usar o dinheiro do povo, e o povo não.

- Eu sei usar o meu dinheiro.

- Você torra todo o seu salário com cerveja.

- E churrasco.

- E camisas do Tricolor.

- Gasto o meu dinheiro, que é meu; se o dinheiro que eu gasto é meu eu o gasto como bem o entender. Não devo satisfações a ninguém. Não devo nada a ninguém.

- Não deve?! E os oitenta que anteontem você me pegou emprestado?!

- O combinado foi eu pagar você no mês que vêm.

- E você está, aqui, gastando uma fortuna em cerveja.

- O dinheiro que estou gastando, aqui, não é o que você me emprestou; é outro.

- E os políticos usam o nosso dinheiro.

- Dinheiro meu eles não usam, não. Nunca peço nota fiscal.

- Você paga imposto na hora da compra. De cada dez Reais que você gasta quatro vão para o governo.

- E por que o governo precisa de tanto dinheiro?

- Para gastar.

- Se o governo me tira dinheiro para gastá-lo, dinheiro que é meu, então que deixe o meu dinheiro comigo porque eu sei gastar o meu dinheiro, e sei gastá-lo melhor do que o governo jamais o saberá. Eu sei o que é bom para mim e para a patroa e para aqueles três animaizinhos ranhentos que todo dia me aporrinham a cabeça. E olha que eu tive de trocar a fralda de cada um deles mais de uma vez.

- Não preciso do governo para me dizer o que tenho de fazer com o dinheiro que é meu. Tenho consciência das minhas responsabilidades.

- Lá em casa é assim: eu trabalho, e minha mulher também. Temos de cuidar dos dois filhos. Como eu não tenho jeito para a coisa, deixo o encargo com a minha mulher, que cuida de comprar comida, roupas, alimentos, vestimentas, remédios e outras inutilidades, e fico eu encarregado de comprar o que é importante: a cerveja, a cachaça e os produtos que estão diretamente relacionados com os afazeres de um salutar churrasco de dar água na boca.

- Se eu trabalho, se eu ganho dinheiro, se eu tenho consciência do que preciso, se sei o que tenho de fazer com o meu dinheiro, porque tenho de entregar a responsabilidade de usá-lo aos políticos, que não sabem das minhas dificuldades?! Dizem os políticos que é para o nosso bem que eles nos tiram o nosso dinheiro. Ora, uma vez, vocês se lembram, o meu filho caçula envolveu-se num acidente de carro, quase vindo a partir desta para a melhor, e a patroa e eu tivemos de mover mundos e fundos até arrumar o dinheiro para custear o tratamento do garoto. Foi um Deus nos acuda! Drenamos a caderneta de poupança. Recorremos aos familiares, aos parentes e aos amigos, e de alguns dos destas três categorias de seres vivos ganhamos uma porta na cara, e contratamos empréstimo bancário. E o que o governo nos ofereceu?! Nada. Migalhas. Esmola.

- E você vendeu o carro que havia comprado poucos meses antes.

- Verdade. Bem lembrado. Só nesta transação minha mulher e eu perdemos uma nota preta. Quem paga por um carro com dois meses de uso, praticamente novo, com, se muito, quinhentos quilômetros de estrada, um preço próximo do que valia, na concessionária, um minuto antes da assinatura do documento de compra e venda?! Ninguém. Perdemos a senhora mãe de meus três filhos e eu um dinheirão.

- Quantos anos de carteira assinada você tem?

- Vinte e cinco. Na ocasião do acidente do meu caçula, que é, hoje, com a graça de Deus, um homem feito e pai de um dos meus sete netos, há uns oito anos, dezessete.

- Faça um cálculo rápido, arredondando: Qual o seu salário e quanto você paga de imposto todo mês?

- Livre-me! Meu salário, naquela ocasião, há oito, nove anos... Se não me engano, eu ganhava, então, três mínimos, e a minha esposa, dois. A nossa renda familiar: cinco salários mínimos, limpos, na mão. Por aí. Hoje, daria uns sete mil e quinhentos, tirando os descontos e somando os extras. Se a patroa e eu ganhávamos uns cinco mínimos, então, se todo mês gastávamos uns três quartos disso, isto é, uns cinco mil e quinhentos, e se quarenta por cento disso são impostos, então, pagávamos, todos mês, para o governo, de livre e espontânea vontade, uns dois mil e lá vai cacetada. Em um mês. Em um ano dá vinte e seis mil Reais. Uma fortuna. Em dezessete anos de carteira eu e a minha mulher, que deve ter por aí, hoje, de carteira, o mesmo que eu, pagamos para o governo, de livre e espontânea vontade, que fique bem entendido, uns... uns... Deixe-me... Caramba! Passa de quatrocentos mil Reais! Passa, até, de quinhentos mil! Meio milhão! Cacilda! Eu nunca tinha pensado nisso!

- E sem contar a mordida do leão.

- Aí sobe para um milhão.

- E em troca o que o governo oferece a vocês?

- As piores escolas do mundo, os piores hospitais, as piores ruas, as pioras estradas. E muita coisa de que nunca precisamos, de que não precisamos e de que jamais precisaremos.

- Se estivesse com você e com sua mulher essa grana você e ela não precisariam contrair empréstimo bancário que consumiu toda a economia de vocês.

- E você teria bebido muito mais cerveja, e hoje sua pança teria o triplo da circunferência que tem, e a sua calvície seria menor, afinal menores seriam as suas preocupações, e, talvez, se bem aplicado o dinheiro, você e sua mulher teriam muito mais dinheiro, e você teria pago mais cerveja para os amigos, os amigos-do-peito, e eu sou um deles, um dos mais antigos, e dos melhores, e teríamos ido para o Japão assistir à final do Mundial, todas as despesas pagas por você, corinthiano roxo, fã número um do Magrão e do Riva.

- Eu sou palmeirense, ô, energúmeno! Bebeu demais, ô, desmiolado!

- Dá-lhe porco! E o que impediria você de ir para o Japão ver o Timão arrebentar a boca do balão?! E o que impediria você de me pagar a passagem de avião?! A de volta. E também a de ida. Nada impediria você de me fazer este ato de caridade cristã. Eu sou um sofredor. Maldito governo! Cobra de você tanto imposto que impede você de fazer a felicidade dos amigos. Ah! Que tal iniciarmos uma revolta?! A revolta dos bebedores do mais puro malte. À revolução, cambada de jegues! Pela felicidade geral da nação, pelo bem das formigas e das maritacas, e dos brutos que também amam, e dos amantes da loira gelada, digam ao povo o que quiserem dizer.

- Bebeu demais, estrupício.

- Minha cabeça 'tá girando mais do que pião em terreiro de umbanda.

- Feche a matraca, corinthiano.

- Abaixo os impostos! Acima a cerveja!

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 27/01/2024
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