Escolinha da Dona Carlota

1963 era o ano.

Clóvis Oscar, meu irmão mais velho, o primogênito, começava a estudar no 1º ano do atual “Fundamental”, até então, chamado de “Primário”.

A escola era numa casinha pequena, daquelas com assoalho de madeira e porão, que quando se anda faz barulho oco. Lá, Dona Carlota, a professora, oferecia o curso primário, com a famosa cartilha “Caminho Suave”, muitos irão se lembrar dela, da cartilha, claro.

Dona Carlota era uma professora exigente, e pasmem, ela dava explicação com um bastão de madeira que tinha uma extremidade em forma de círculo, logo soube que se tratava de uma “palmatória” ¹.

Para os alunos, das décadas seguintes, anos 70 em diante, isso era uma coisa desconhecida, mas para quem passou pela sala da Dona Carlota, foi o terror.

Eu, curioso que era, ficava em cima do meu irmão Clóvis Oscar, que tinha o apelido de “Totai”, para aprender algumas letras e palavras, e de repente, lá estava eu, depois de uns quinze dias, lendo algumas coisas do seu caderno.

Meus 6 anos de idade, já se aproximavam e logo poderia ir para a escola, pois estava cheio de vontade de aprender a ler. Meu pai trazia vários gibis, e eu adorava ver as figuras, e agora, já queria ler os balõezinhos relacionados às figuras.

Minha avó, ao notar minha vontade de aprender a ler, teve a ideia de me levar para a escola de Dona Carlota. Fiquei muito contente, e lá fomos nós, eu e meu irmão, para a escola da Dona Carlota.

A professora, sem titubear, me aceitou de imediato. Com um caderno brochura, um lápis preto nº 2, e uma borracha verde, lá estava eu e meu irmão, sentados em uma banca escolar para aprendermos a ler, seguindo a cartilha, que era uma, mas nos servia muito bem.

Pude notar que a Dona Carlota era muito severa, nervosa, e gritava muito com alguns coleguinhas. Presumo que éramos uns 20 alunos, todos com 7 anos ou mais, e eu ainda nos cinco anos e dez meses, logo completaria os 6 anos em dezembro.

“Totai” era um pouco distraído, e sempre levava alguns gritos na orelha. Ela não poupava a goela, e gritava alto mesmo, era assustador, parecia um “twither” sem controle, estridente, e bem desafinado. Além da cara e jeito de bruxa, ela era muito nervosa e demonstrava muita raiva, até hoje não consegui decifrar o porquê, daquilo tudo...

Depois de passados alguns dias naquela sala de aula, eu já estava cheio de medo de Dona Carlota. Ela nos com a palmatória, que na parte arredondada feito frigideira era repleta de furos. Confesso que não havia passado pela minha cabeça como aquilo seria utilizado nos alunos, nas crianças ingênuas e sem maldade.

Foi numa tarde sinistra, com muita chuva e sem luz elétrica, que de costume quando a chuva era forte, caía, e tudo ficava no escuro.

Dona Carlota, que cobrava o silêncio da turminha aos berros, de repente, anunciou os nomes do meu irmão e de mais um outro coleguinha. Deveriam ir à frente e apresentarem os cadernos para uma vistoria.

Meu irmão ficou meio incomodado com aquela ordem, demonstrou medo e inquietação, mas apanhou seu caderno, se levantou e o levou para a inspeção. E daí foi o meu espanto! Ela desembestou em uma gritaria com ele, chamou-o de vagabundo, falou que ele não seria ninguém na vida, e ainda afirmou que nem pra “Lixeiro” ele iria servir. Desfiou um imenso repertório de coisas ruins sobre meu irmão, o qual já estava soluçando e com os olhinhos que já afogavam as pupilas, estava visivelmente apavorado.

Não satisfeita, mandou que ele estendesse a mãozinha aberta e segurando-a com a mão esquerda, desceu aquela coisa de madeira na palma da sua mão, sem dó!

O estalo foi de amargar, todos nós gritamos de medo, e ela, que segurava a pequenina mão do meu irmão, tornou a desferir um outro golpe. Aquilo bastou para que ele se urinasse todo, e caísse em prantos.

Não contente com as agressões e o resultado chocante de suas ações, ela ainda o levou pela orelha, violentamente esticada para cima, ao banheirinho escuro, do lado de fora da sala, e após alguns segundos lá dentro, com ele, ela saiu e passou a chave na porta, trancando “Totai” naquele cubículo escuro e fétido.

O mesmo foi feito com o coleguinha, que gritou muito depois da tortura.

Eu fiquei petrificado! Nem me mexia! Estava realmente transbordando pavor! Não tinha voz, fiquei sem fala, e acho até que entrei em apneia forçada, com medo de respirar e incomodar aquela malvada e diabólica criatura.

A aula continuou no maior silêncio, sob a luz de dois lampiões de parede, aqueles de querosene, muito usados em sítios e locais mais afastados da cidade grande.

Essa escolinha ficava na Vila Mariana, na capital de São Paulo.

Depois de mais ou menos uma hora do ocorrido, ela encerrou a aula e foi abrir o banheirinho fétido, a fim de libertar os meninos castigados.

Corri em direção ao “Totai”, e pude ver que seus dois joelhos estavam ralados e bem vermelhos, com pequenas fissuras e algumas sangravam. Perguntei sobre aquilo, e ele, ainda aos soluços, me respondeu que havia sido colocado de joelhos, pela diabólica criatura, sobre as tampinhas de garrafa, que se encontravam viradas com as ranhuras para cima. Dona Carlota, aquela bruxa, o teria ameaçado com mais palmatórias, caso não ficasse de joelhos nas tampinhas de garrafa, isso era pra ele e para o Maurício, e ela, a perversa, iria verificar os joelhos quando fossem libertados, e caso não tivessem as marcas das tampinhas, seriam submetidos a mais palmatórias, e assim o fez.

Não via a hora de chegar em casa, que ficava um quarteirão acima daquela câmara de tortura, na mesma calçada, interrompida por uma rua transversal, a qual atravessávamos com toda a cautela.

As ruas do bairro eram de terra, e as calçadas aguardavam a cobertura de cimento, e eram cobertas por britas miúdas.

Subimos rapidamente para casa, e fomos correndo contar para a vovó “Lála” o que havia acontecido. Esta ficou indignada e nos levou para tomar banho. Prometeu que daria um jeito, e que iria contar para nossa mãe e pedir a ela nos tirar daquela maldita escolinha dos infernos, escolinha do terror e da tortura.

Fomos para a sala brincar um pouco, e meu irmão contou que havia arrancado uma folha do caderno, e esse teria sido o motivo de sua punição, na minha ótica uma verdadeira tortura.

No dia seguinte, fomos ter com minha mãe, que nos informou, não precisarmos mais ir a tal escolinha da “Dona Carlota”, pois seríamos matriculados na escola estadual, que ficava uns cinco quarteirões da nossa casa, escola que tinha sido inaugurada naquela semana.

As lesões nas mãos do meu irmão, demoraram alguns dias para sumirem, bem como as diversas marcas profundas em seus joelhos.

Essa coisa toda foi uma experiência terrível, que nunca pudemos esquecer.

Eu e “Totai”, hoje infelizmente já falecido, sempre nos lembrávamos daquele triste e apavorante episódio de nossa infância quando nos encontrávamos.

Pudemos conversar muito a respeito do ocorrido depois de adultos. Ficávamos muito tristes com as lembranças, e mais ainda, porque nossos pais nada fizeram a respeito.

Comentávamos sobre quantas crianças deveriam ter sido vítimas daquela bruxa, daquela situação, vítimas dos abusos, das atrocidades, da tortura física e mental promovida por aquela diabólica criatura sem alma.

Passados uns dois anos do ocorrido, eu no 2º ano primário, e meu irmão também, ainda tínhamos sequelas daquele episódio dantesco na escolinha da “Dona Carlota”.

Todas as vezes que a professora elevava a voz, eu era tomado por um tremor interno terrível. Sentia que meu corpo passava por ondas de choque inexplicáveis, entrava em curto, sei lá... Meu irmão, se urinava constantemente. Pedia para ir ao banheiro e logo em seguida se urinava. E criançada não perdoava, eram cruéis mesmo! Todos o apontavam e riam sem parar, e eu ficava morrendo de raiva e de vergonha. Foi uma situação nos acompanhou até o 4º ano primário.

No 3º ano, eu fiquei em uma classe com uma professora chamada “Dea”, e ele foi para outra, com outra professora chamada “Ivone”.

As coisas estariam se ajeitando, bem lentamente, mas “Dona Dea” era muito nervosa, sempre aos gritos com os alunos, ao menor barulho ou conversa paralela. Parecia que a cena se repetiria, e esse era meu medo.

Havia uma garotinha chamada Inês, essa menina era o alvo principal da professora, que descarregava sua raiva aos berros. Fatos envolvendo-a, ficará para uma outra ocasião. Também muito marcante...

Década de 60, ainda existiam essas feras soltas e sem quaisquer escrúpulos ou respeito à vida humana, e principalmente em se tratando de crianças.

Com a pecha de educadores, escondidos atrás de seus diplomas de professores, largavam o sarrafo nas crianças, sabe-se lá por quais motivações ou frustrações desses mesmos “educadores”.

Caiu a tal de “Palmatória”, contudo, os canalhas logo acharam uma outra coisa para substituir a dita. Foi a “RÉGUA DE MADEIRA”, de uns 50 centímetros, bem grossa e resistente, que começava a ocupar o espaço deixado pelo instrumento de tortura tão temido pelas crianças. Em pouco tempo, essa régua já colacionava inúmeros relatos de alguns idiotizados que a usavam para bater na cabeça dos infelizes alunos, e sustentavam em suas esdrúxulas falas inúteis a aplicação e uso desta que afirmavam ser de extrema eficácia.

Infelizmente, os fatos abomináveis, aqui narrados, foram verdadeiros, e eu, e meu irmão, os vivenciamos e jamais esses fatos irão se apagar da minha mente e do meu coração.

Claudio Falcão

(“Contando histórias”)

20/01/2024

_____________________________________________________1. (Um dos instrumentos de punição física de estudantes mais utilizado no mundo foi a palmatória, cujo emprego no Brasil se deu por volta do século XVI a partir dos jesuítas como forma de disciplinar os indígenas resistentes à aculturação.)

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 29/01/2024
Código do texto: T7987463
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