Clotilde e Lúcia

Nesta noite beirando a temperatura carioca, de 30 graus para cima em todo Brasil, eu Lúcia e minha amiga Clotilde, voltamos do supermercado. Caminhamos lado a lado praticamente toda a vida. Irmãs inseparáveis, mescladas numa fusão tão natural quanto a vida com a morte. Mas sei que Clotilde tinha inveja de mim, e eu também dela. Sempre fui a mais bonita do nosso grupinho, e suas críticas pontudas com meu rosto não me restam dúvidas. Quando ela trabalhava como costureira para ajudar a mãe, pedi um favor: remendar perfeitamente um vestido recém-adquirido. Ela apertou demais até estragar o vestido, e eu precisava urgentemente usá-lo. Chateada, saí da casa cheia de cólera, amaldiçoando Deus e os bêbados os quais me assoviaram. Ou daquela vez em que sua paixonite da escola vivia a confundindo com promessas, mas no fim, no entardecer duma madrugada, sua boca é quem adocicou a minha. Paramos de nos falar por uns meses, mas pela nossa amizade ser mais dura que rochedos, voltamos a papear como velhas amigas que somos. 

Clotilde é uma boa pessoa, mas cá entre nós, é carrancuda, não tem beleza e nem apreço em se cuidar como eu me cuido. Nunca ligou para as coisas mais comuns da mulher. Invejava meus namoradinhos, mas poxa, parecia viver sobre escombros de uma bruxaria qualquer. Tadinha, mas era trabalhadora, desde a idade prematura herdou uma responsabilidade a qual eu nunca tive. Sei que meus amigos e pais me mimaram por muito tempo. Tive todas as oportunidades (mal aproveitadas), no inverso, ela já sabia que se não juntasse uma grana, passaria fome. Vida difícil em todos os sentidos. Era calma e estudiosa e só saía do quarto quando eu a visitava. Era o meu bichinho do mato, pereba do sapato que não sai. Minha inveja é da parte da disciplina, enquanto gastei rios de dinheiro com bobagens, ela reservou e sempre contava cada centavo escorrido de suas mãos em direção ao bolso. 

Preparadas com as sacolinhas caminhando serenas, o calor de matar me traz memórias tão engraçadas. Hoje nós rimos de coisas que passamos, a maturidade nos foi dada, ainda bem que não tem inveja e homem nenhum que nos separe… exceto este que avisto. Caminhamos avistando um menino com os braços cruzados fitando as nuvens e para nós. 

Começo a imaginar o quão interessante é essa história, por mais intrigante que seja, nunca conheci, ao menos na minha consciência cronista, Clotilde e Lúcia. Imaginei-as debruçando no meu tédio calorento duas senhoras passando; depois do caminho reto, viraram a esquina, e a epifania sobre vidas irreais panfletaram a minha pseudorrealidade. 

Reirazinho
Enviado por Reirazinho em 03/02/2024
Reeditado em 28/02/2024
Código do texto: T7991452
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