Uma ideia que deu errado...

Aquela tarde estava ótima. Deitado no chão da sala, sobre o tapete e com os olhos pregados no capítulo decisivo do seriado semanal. Viajava constantemente nas histórias dos seriados de televisão da época.

A imagem, em preto e branco, na tela arredondada da televisão “Invictus”, marca do aparelho, repleto de válvulas (tubos de vidro do tipo lâmpadas) que garantiam a imagem, e, embutido em uma caixa enorme de madeira, com portinholas que o escondiam depois que era desligado.

Nessa época, pouquíssimas pessoas tinham a oportunidade de conseguir comprar uma televisão. O rádio imperava em todas as casas. Poderíamos nos considerar uma família de sorte, nós tínhamos esse aparelho que trazia o rádio com imagens, era fantástico!

Quando o relógio marcava sete da noite, várias vizinhas vinham assistir à novela da época que era transmitida pela “Tupy”, canal “4”.

A imagem era perfeita, mesmo sendo preto e branco.

“O direito de nascer” era a novela. Eu não dava a mínima para aquele drama, apenas sabia da sua existência pelo movimento que causava, com as pessoas chegando para assistirem o desenrolar da estória.

Gostava mesmo era de uma coleguinha que vinha com a mãe. Adorava ficar com ela, conversar, jogávamos dama, ludo, memória, e de vez em quando, apostávamos quem montaria primeiro um quebra-cabeça, pois eu sempre tive vários. Também aproveitávamos nosso tempo para traçar estratégias que serviriam para o jogo de turmas no dia seguinte.

A sossegada tarde, esta, não durou muito. Com o término do filme, desligamos o aparelho de televisão, conforme orientação do meu pai, era necessário para garantir seu uso por mais tempo. Seguíamos à risca. Ele dizia que as válvulas eram como lâmpadas, tinham tempo de uso, e eram caras para trocar, portanto, o negócio era economizar para estendermos o tempo de uso do aparelho por mais tempo sem problemas.

Fomos para o quintal interno, que separava minha casa da vizinha Silvia. Lá brincávamos de serrar algumas tábuas para montarmos um “Posto de serviços”, era nossa meta. Bate aqui, prega dali, serra, e vamos montar um posto para colocarmos nossos carrinhos e caminhões da “Trol” e da “Estrela”, tínhamos vários.

Havíamos pegado algumas ferramentas que pertenciam ao meu avô. Com ele viajando, estávamos liberados para mexer na caixa de ferramentas que ele mantinha sob a cama, sem problemas. E foi daí que descobrimos um alicate inglês, que ele tinha o maior ciúme, e em alguma ocasião, já o teria nos mostrado.

Era uma ferramenta, pois tinha uma orelha lateral que funcionava como cortador de pregos e arames, bem afiado. Foi esse o gatilho responsável pela nossa ideia maligna.

Eu e Clóvis, subimos no muro que separava os quintais. Esse muro tinha o triplo da nossa altura, mas usamos nossas armações do posto de serviços, que mais parecia um barraco, e lá fomos para o topo do muro.

A intenção foi apenas cortar o fio mestre do varal da vizinha que estava lotado de lençóis brancos. Pura peraltice sem nexo. Lá estávamos nós, olhando aquele monte de lençóis limpinhos, tomando sol. Pareciam nuvens no céu, formavam bolhas com os ventos que os estufavam, e até hoje, nem sei por que tivemos aquela infeliz ideia de cortar o fio mestre, o qual segurava uns quatro varais bem longos, todos lotados com os lençóis.

Eu, mais ligeiro que meu irmão, peguei o alicate, encaixei a orelha cortadora do danado no tal fio mestre, e pronto, as peças branquinhas despencaram todas de uma só vez ao chão sujo do quintal. Ainda havia um fogareiro apagado e cheio de carvão. Imagina o estrago quando o fogareiro sumiu sob os lençóis?

Depois de cortar, passei o alicate para o meu irmão, pois precisava me virar para sair do topo do muro e alcançar o teto do posto de serviço para descer de lá, para o quintal. Foi o que fiz, mas o “Totai”, ficou lá em cima com o alicate na mão e de repente, ouvi uma voz bem incisiva que disse:

- Muito bonito seu Clóvis Oscar, vou contar pra sua mãe quando ela chegar! – era a vizinha de cima, Dona Lourdes.

Minha mãe não estava em casa, e Dona Lourdes certamente contaria sobre a nossa travessura para minha mãe! Isso era assustador.

Em seguida foram Silvia e sua irmã mais velha, Dona Amélia, quem gritaram dizendo que iriam juntar tudo para minha mãe lavar e entregar tudo limpinho, como estavam antes do nosso reprovável mal feito.

Silvia e sua irmã, lavavam roupas para ganhar um dinheirinho.

Dessa vez estávamos ferrados mesmo!

Corremos para dentro, fechamos as portas e fomos para o quintal nos fundos e abaixo do nível da casa. Lá permaneceríamos até que a coisa toda fosse revelada à nossa mãe.

Minha avó estava costurando em nosso quarto, e não sabia de nada, pois não tinha ouvido nada e nem visto o ocorrido.

Ficamos pelo quintal confabulando a respeito do que minha mãe faria com a gente. Eu falava ao meu irmão que dessa vez, ela iria nos matar mesmo! Ele ficava paralisado e pensativo com aquele olhar flutuante, sem destino, e não dizia nada.

A campainha da minha casa era bem estridente. Quando alguém a tocava, seu som enchia todos os ambientes. Lá de baixo, no quintal, dava bem pra ouvir quando era acionada.

Passado algum tempo, a campainha tocou. Pudemos sentir que a coisa ficaria muito feia.

A vizinha de cima e a Silvia foram ter com minha mãe. Subimos e fomos espiar as conversas. Para minha surpresa, a acusação feita pelas vizinhas foi somente contra o Clóvis Oscar, eu havia ficado de fora da denúncia da arte.

Na minha cabeça, identifiquei de imediato que uma tremenda injustiça seria cometida. O denunciaram, acusando-o porque ele estava encima do muro com a arma do crime na mão, o alicate.

Eu me questionava como poderia salvá-lo sem me condenar também? Não conseguia achar nenhuma resposta satisfatória, todas me condenariam também.

Enfim, elas trouxeram as roupas sujas e as deixaram lá para minha mãe lavar.

Quando a porta da sala se fechou, e elas foram embora, minha mãe deu um grito estridente, chamando a mãe dela, minha avó Lála. Ela correu para verificar do que se tratava, e minha mãe jogou todas as roupas brancas sobre ela, e aos gritos insanos, disse que ela teria que lavar tudo e entregar para a Silvia. Completou ainda, dizendo que iria quebrar o meu irmão em mil pedaços. Coitado do Clóvis Oscar, o “Totai”, ele não merecia ser dizimado pela malévola Dona Leny. Afinal, eu teria cortado o fio do varal e não ele, que apenas estava junto naquela investida. Quem merecia ser castigado mais, era eu e não ele.

O problema agora era tentar se explicar para a nervosa criatura. O Clóvis Oscar era apenas cúmplice e não o autor, e também, sendo mais verdadeiro ainda, eu é quem tinha tido infeliz ideia e concretizado o ato.

Minha mãe foi ao quarto, e quando voltou, se posicionou atrás da mesa da sala, e logo deu início à sentença condenatória, e começou com meu irmão. Aos gritos estridentes, o chamou:

- Clóvis Oscar, venha já aqui! – e começou uma contagem...

- Vou contar até dez...

- Um, dois, três, quatro... – e quando foi passar para o próximo número, meu irmão se apresentou a ela. Se posicionou atrás da mesa, do outro lado, e ela começou a perguntar sobre o ocorrido:

- Como foi que você fez aquilo com o varal da Silvia? Vou desmontar você todinho hoje! Vou quebrar todos os seus ossos! – meu irmão permaneceu mudo e começou a soluçar, chorando baixinho...

Ela, com um cinturão de couro, repleto de ilhoses de metal, e com um fivelão quadrado, anunciou a sentença dizendo:

- Vou contar de dez em dez, e se você não se entregar aqui, pra mim, irei aumentando dez ao resultado, e logo teremos um total de lambadas que você irá levar.

Nesse momento tentei falar com ela, mas ela me ignorou, estava alucinada, seus olhos verdes fumegavam chamas feito boca de dragão...

Meu irmão não disse nada a ela, ficou mudo e começou a pular chorando compulsivamente e pedindo clemência.

Mesmo vendo ele naquela situação, ela deu início à tal de contagem de dez em dez, e quando chegou nas sessenta lambadas, eu gritei que ele era inocente, mas ela novamente, fez de conta que nem me ouviu, e passou para setenta lambadas.

O Saulo e o Deda, estavam só assistindo ao terrível castigo que o meu irmão iria enfrentar.

Eu estava com minha avó que me abraçava e dizia pra minha mãe que iria lavar tudo, ela não precisava fazer aquilo com meu irmão. Mas de nada adiantou. Minha mãe parecia tomada pelo demônio, queria sangue. Proferia palavras horríveis, dizia que iria picar o meu irmão em pedaços para ele nunca mais fazer nada. Que iria jogar seus pedaços para os cachorros comerem.

Ainda prosseguindo na maldita contagem, ela atingiu o número oitenta. Ele, sem saída, estendeu os bracinhos e se entregou às garras daquela criatura transtornada e cheia de ira.

Apanhou as oitenta lambadas e mais cinco, que ela as nomeou de “Lambuja”, justificando como sendo por ele ter demorado para se entregar ao castigo, cumprimento da sentença condenatória por ela determinada.

O pobre garotinho que tinha uns sete anos ou pouco menos, não me recordo ao certo, ficou molenga nas mãos dela e desmaiou com a violência das oitenta e cinco sapecadas com aquele talabarte de couro, repleto de ilhoses de latão. Ela foi até o fim, deixando-o esparramado no chão, ele mais parecia um tapete. Eu olhava aquilo e chorava muito, agarrado nas pernas da minha avó.

E foi ela quem o recolheu do chão, e nesse mesmo instante, minha mãe se voltou para mim. Agora era a minha vez de entrar na dança desesperada das lambadas certeiras que ela desferia sem dó.

Não deixei que ela avançasse muito na contagem. Nas cinquenta me entreguei. Foram cinquenta bem aplicadas, tanto que fiquei sem sentir as pernas e acabei caindo e enfiando a cabeça no degrau de madeira que havia embaixo da mesa. Foi uma senhora pancada... Verdadeiro circo dos horrores!

Mas o que não esqueço foi a atitude do meu irmão Saulo. Ele ficou o tempo todo que apanhávamos, sambando e pulando de alegria. Ainda gritava;

- “Show Rivo”, lê le, “Show Rivo”!!! - era programa da época, que passava na televisão.

Esse debochado não apanhou nada. O Deda, por ser menorzinho, levou apenas dez lambadas, e o coitadinho nem sabia de nada. Acho mesmo que ele nem entendia o porquê daquilo tudo.

Satisfeita com o esparramo, ela se recolheu ao quarto, que pra mim, sempre identifiquei como sendo o um covil.

O puxa-saco do Saulo foi para o nosso quarto e ficou por lá, comendo terra dos tacos que soltavam. Quase sempre fazia isso.

Eu, meu irmão Clóvis, e o Esdras (Deda), fomos para o banheiro tomar banho na bacia de zinco. Minha avó colocava sal na água, dizia que aliviava os vergões e os hematomas causados pela surra.

Ela chorava e ficava bastante indignada, não se conformava com aquilo tudo. Nos esfregava com todo cuidado usando as esponjas de banho. Clóvis havia ficado bem machucado, e eu também, mas era assim mesmo, não tinha pra onde correr. Essa prática de nos surrar, havia se tornado uma celeuma terrível em nossas vidas. Não tínhamos escapatória. Contar para o meu pai, não adiantava, pois ele fazia de conta que nada havia acontecido.

O negócio era torcer para não cair nas garras da insana criatura nervosa. Ela era muito ruim, chegava a ser sanguinária, não tinha um pingo de dó e nem compaixão. Não nos entendia, e vivia dizendo que iria nos matar para se livrar dos problemas. De vez em quando, na frente de algumas pessoas, na rua, ela nos chamava de “Índios” em tom pejorativo, dizia que não tínhamos educação, e outras coisas que hoje, nem consigo elencar.

Esse é mais um registro, que para alguns, pode até não passar de um desabafo, mas nunca deixará de ser uma coisa vil e sem propósito, que não pode se repetir com outras crianças, jamais...

Claudio Falcão (Contando histórias)

30/01/2024

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 05/02/2024
Reeditado em 05/02/2024
Código do texto: T7992623
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