"A TAÇA DO MUNDO É NOSSA!"

Era pra ser só mais um longo dia de muitas brincadeiras, peladas diversas na rua, “bater figurinha”, era a época delas, em virtude da Copa do Mundo.

A criançada só ficava atrás da “Figurinha Carimbada”, essa valia umas cinquenta das comuns que serviriam para completar o álbum.

Eu e meus irmãos, Totai e Deda, brincávamos no quintal que havia atrás da casa onde morávamos.

Era atrás, mas ao mesmo tempo, tinha um quarto inabitável, bem úmido, com as paredes mofadas, que ficava embaixo da casa. Lugar onde brincávamos quando chovia.

A rua da frente de minha casa era alta, e a casa fora construída em um barranco, por isso ela tinha a parte detrás que ficava abaixo do nível da rua da frente, além de fazer fundos a uma vila de casas, separada por um corredor largo que fazia ligação com a rua alta, por uma das laterais do conjunto que a casa fazia parte. Construções antigas tinham disso.

Brincávamos com as ferramentas usadas para a jardinagem do quintal. Com um enxadão, cavávamos um grande buraco para fazermos um esconderijo, coisa insana e perigosa, mas não enxergávamos assim.

O buraco estava bem fundo, já ficava difícil sair de dentro sem ajuda, era hora de pararmos de cavar e fazermos uma tampa, e precisaríamos de sarrafos para montar a tampa. Saímos em busca das madeiras que serviriam para esse fim.

Uma aventura atrás da outra. Fomos ao terreno baldio que ficava próximo e começamos a procurar as tábuas para concretizar nosso projeto.

Em meio a muitos sarrafos velhos, descartados de construções, achamos vários em forma de cilindros, pareciam cabos de vassouras, então os levamos para a nossa área de construção, quem sabe com eles daria certo.

Lá chegando, colocamos todos no chão e começamos a amarração com um velho e enferrujado arame de varal.

Separei um cabo de madeira bem liso e ajeitado para fazer um trapézio que se apoiaria, cada extremidade, nos muros da escadaria, que no final faziam par, um de cada lado, terminando em pequenos pilares em forma de pirâmides. Tinha servido muito bem para o que eu havia pensado. Colocaria o cabo de vassoura de um lado a outro, apoiado nas muretas, então poderia balançar sem problemas, feito um macaco, e assim fizemos.

Com a peça de madeira já apoiada nos muros, dos dois lados, eu e meu irmão mais velho, o Totai, começamos a cantarolar a música da Copa do Mundo, que dizia, “... a taça do mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa...”, e seguíamos cantarolando e pulando, balançando muito e pulando fora com o impulsionamento.

A brincadeira estava bem agitada, e nos divertíamos muito.

O Esdras, que chamávamos de "Deda", apenas olhava, e não participava da brincadeira. Acho que ele tinha medo daquele tipo de coisa, devia achar perigoso, pois estávamos no final da escada, com alguns degraus ainda faltando para chegar ao nível do chão plano e seguro.

A coisa ia “de vento em popa” como dizem. Nada e nem ninguém nos interrompia. Corríamos para subir uns cinco degraus, passávamos por baixo do cabo de vassoura, e pronto, descíamos correndo e nos projetávamos segurando no tal cabo de madeira em forma de cilindro, e balançando até diminuir o impulso ou sentirmos as mãos cansadas.

Mas eis que de repente, o tal do apoio de madeira que servia de trapézio, escorregou de uma das paredes, se me lembro do lado esquerdo, enquanto eu estava pendurado balançando, e me preparando para a saída, e lá fui eu com tudo para baixo. Caí de costas e para o meu azar, bati com a cabeça em um dos degraus, bem na região da nuca.

A tragédia se fez presente!

Com a queda e a pancada, apaguei de uma forma estranha, pois ouvia meu irmão gritando comigo para me acordar, mas não conseguia de jeito nenhum. Dos meus sentidos só havia me restado a audição.

O "Totai" ficou apavorado e provavelmente foi ele quem acionou minha vizinha Silvia.

Eu só me recordo de um tremendo falatório, e em meio as falas ouvia:

- O Maneco morreu, ele morreu! O Maneco morreu!

Silvia me pegou no colo e me levou às pressas para sua casa. Colocou um monte de gelo em minha nuca. Soube do gelo porque ouvi falarem para colocar gelo, porque frio eu não sentia mesmo.

Só sei que durante um bom tempo desacordado no colo de Silvia, mas ouvindo músicas de circo e falatórios mil, os quais se misturavam e eu não conseguia focar em nada.

Em dado momento tive lampejos azuis em meus olhos e comecei a enxergar, foi daí que percebi que estávamos em um circo. A música era daquele lugar mesmo! Fiquei feliz!

Silvia havia me levado para o circo que havia se instalado, havia pouco tempo, no final da rua que morávamos.

Acordei de repente, mas não conseguia me mexer, só enxergava e ouvia, não sentia meu corpo, parecia que tinha encolhido totalmente e só tinha me restado a cabeça. Essa sensação foi por bom tempo minha aliada. Acho mesmo que fiquei umas duas horas nesse estado.

Silvia que já era jovem, ficou comigo até eu acordar. Quando isso aconteceu, seu alerta foi:

- Maneco, não se preocupe, sua mãe não irá te pegar viu?

Ah, aquilo foi o unguento que faltava para eu acordar de vez, melhorar e me sentir renovado e protegido.

Passei a sentir minhas mãos e pernas, o frio do gelo na nuca e comecei a conversar com ela. Perguntei a ela se eu tinha morrido, ela riu e balançando a cabeça, respondeu que não, mas completou:

- Você ainda vai deixar muita gente careca! – e deu muitas gargalhadas, algumas denunciavam o seu nervosismo.

Fui levado para casa, e claro, entregue para minha avó. Ela estava desesperada! Pude notar em seus olhinhos azuis como o céu, com suas molduras naturais bem vermelhas, inchadas de chorar.

Ela e Silvia me levaram para o hospital que ficava perto de casa, e por lá fiquei algumas horas.

Confesso que gostei muito de ficar por lá, apesar de ter ficado sozinho, pois minha avó e Silvia não subiram para o quarto.

Não havia levado nenhuma surra da minha mãe, que também nem vi, ela não apareceu. Pra mim, mais um alívio.

No hospital comi alguns biscoitos, tomei “Ovomaltine” e ainda recebi muito carinho das enfermeiras. Estava ótimo aquilo tudo.

Mas nada é pra sempre, era chegada a hora de ir pra casa. Logo imaginei minha avó me levando e me aconselhando, mas qual não foi a minha surpresa, pois lá, na porta do quarto que eu estava, eis que surge a imagem da minha mãe. Com seus olhos verdes fumegantes de raiva. Quase me joguei no chão fingindo uma recaída. Só não o fiz, porque faltou coragem suficiente para enganar todos ali, que não mereciam essa falsidade.

Fui arrancado do quarto com as unhas da mão direita dela, minha mãe, que as enterrou em meu braço magro, e doía muito, mas já conhecia aquele sofrimento que me causava inúmeros arrepios na coluna.

Fomos nós para casa. No caminho ela não falou nada. Sua mudez denunciava algo de ruim que estaria por vir. Eu preferi ficar quieto, e se ela perguntasse alguma coisa, de pronto teria como resposta, que seria sem sombra de dúvidas, estar tonto e com vontade de vomitar, assim seria.

Lá, no hospital, quando cheguei, todas as enfermeiras me perguntaram se eu estaria com tonturas ou com náuseas, eu nem tive nada disso, mas usaria em meu favor na hora oportuna.

Agora, em casa, ela me soltou o braço (todo lanhado), e eu fui correndo para os braços de minha avó.

Ela se recolheu ao covil, quer dizer, quarto, e eu pude me deitar no colo aconchegante da minha avó, meu anjo salvador.

Silvia vendo que cheguei, veio me ver correndo e trouxe uma porção de bolinhos de chuva que ela fizera, adorei.

Minha avó fez um canecão de café com leite, e chá mate.

Meus irmãos Totai e Deda vieram ficar comigo, e começaram a perguntar o que eu havia sofrido.

Em meio aos bolinhos, chá e o café com leite, fantasiei uma porção de coisas, sabe como é criança né?

Contei pra eles uma tremenda lorota. Falei que havia desligado do meu corpo, que tinha flutuado o tempo todo por cima deles e da Silvia comigo no colo. Aproveitei algumas falas que ouvi, recriei-as com detalhes e pronto, eles ficaram caladinhos me ouvindo. Acho que acreditaram.

Nesse dia, apesar de nada tão grave ter se desenrolado, eu pude ver o quanto estive perto de realmente deixar o corpo, morrer. Foi assustador não poder falar, sentir o toque, e somente ouvir os sons. Uma lição que me fez começar a tomar mais cuidado com as brincadeiras malucas que inventávamos. Tanto que passado alguns dias, convenci meu irmão mais velho a fechar o buracão que tínhamos feito no quintal.

Minha avó, havia me falado que aquilo, de fazer buracos na terra, atraia a morte. Ela sempre falava algumas coisas desse tipo. Então, fechamos aquele buraco sem pestanejar.

Dessa vez, escapei da surra, mas foi por pouco tempo...

Claudio Falcão (Contando histórias)

29/01/2024

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 13/02/2024
Código do texto: T7998043
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