Juntando os cacos da quebradeira...

Era um dia de muitas brigas e brincadeiras. Lá estávamos, eu e o meu irmão mais velho, Clóvis Oscar, o “Totai”.

Brincávamos de super heróis, subindo na mesa enorme da sala da minha casa e pulando no sofá, com capas, máscaras e luvas de borracha.

Era época de muitos seriados na TV. Tínhamos o “Super-Homem”, “Zorro”, “Wild Bill Hickok”, “O túnel do Tempo”, desenhos dos heróis da “Marvel” como “Homem de Ferro”, “Príncipe Submarino”, “Hulk”, e muitos outros...

Eu sonhava ser o “Super-Homem”. Sempre me pegava sobrevoando as ruas do bairro em meus sonhos. Acordava pensando que um dia isso poderia acontecer, coisa de criança criativa.

Me lançava da mesa ao sofá e já emendava com uma queda no tapete, me sentindo o próprio “Super-Homem”. Só que não, de vez em quando, dava errado e caía por sobre meu irmão, daí rolávamos juntos no chão. Isso gerava uma troca de tapas, socos e pontapés, era inevitável.

Tínhamos quase a mesma compleição física, apesar de termos quase dois anos de diferença na idade, ele era mais velho. Nessa época eu tinha 6 anos e ele 8 anos.

Naquele dia, Dona Joana, uma prima distante de meu pai, estava de visita em casa. Era uma senhora idosa, com problemas de visão e audição, mas era muito gentil e brincalhona. Exímia doceira, havia feito cocadas e balas de mel em forma de guarda-chuva, muito bom, fora a torta de bananas...

Por estar morando próximo da nossa casa, ela vinha pela manhã e ficava até o anoitecer. Sempre muito gentil, ajudava minha avó nos afazeres de casa.

Algumas vezes, ela ficava no quintal com a gente, e participava das nossas brincadeiras, como a amarelinha que pulávamos, ela funcionava como uma “Juíza”, tirando dúvidas e sempre nos aconselhando a ter tolerância e paciência, e foi por Deus que ela veio naquele fatídico dia. Não fosse ela, talvez essas palavras, nunca tivessem encontrado o papel.

O fato foi que eu e “Totai”, brincávamos na sala, voando e rolando pra lá e pra cá, como de costume.

Minha mãe estava internada, como sempre, no quarto, e o meu irmão “Deda” no quintal com nossa cachorra “Boneca. O “Dedo-duro”, Saulo, estava no quarto, junto com minha mãe, como sempre.

Eu e meu irmão, em dado momento, começamos uma briga de brincadeira, mas a coisa degringolou e partimos para os socos e pontapés. Rolamos no chão, e em dado momento, caímos dentro da cristaleira da Dona Leny, minha mãe.

A cristaleira estava repleta de coisas de cristal e porcelana. Minha mãe tinha o maior apreço por serem presentes de casamento. Era uma cristaleira de respeito, bem grande e com portas de cristal jateado, daquelas de filme mesmo, e com laterais toda em cristal. Aliás, a sala era toda em móveis de imbuia, entalhados a mão. Só sei que ficamos os dois, enfiados na tal cristaleira, em meio a inúmeros cacos de cristais e não sofremos nenhum ferimento. Foi uma coisa inacreditável!

Dona Joana, sempre muito atenta, veio correndo ver o quê havia acontecido, pois a barulheira de vidros que se quebraram foi intensa, e na casa grande, ecoou bem forte.

Ficamos estáticos dentro do móvel, ocupando o lugar dos jogos de cristal. O medo se instalou rapidamente em mim e no meu irmão, tomou conta mesmo! Sabíamos bem a quem pertencia tudo aquilo que acabara de se transformar em cacos inúteis, e na minha cabeça, nós iríamos ser totalmente despedaçados e transformados em cacos como os que nos cercavam naquele momento desastroso. Dessa vez, provavelmente, nos juntaríamos a todo aquele lixo. Era chegada a hora do “Super-Homem” e do “Homem de Ferro” serem destruídos. Fosse o super que fosse, não o seria suficiente para vencer a ira da “Dona Leny” que certamente teríamos que enfrentar.

Dona Joana nos ajudou a sair do móvel destroçado, e atrás dela, pudemos ver a minha mãe com a camisola de seda amarelada, crescendo e se transformando em um verdadeiro monstro de asas, fumegando pelas ventas feito um dragão enfurecido, com seus olhos verdes que brilhavam de raiva, havia chegado nosso fim!

Mas foi graças a presença de Dona Joana, ela se conteve, e deu meia volta, se recolhendo ao covil, quer dizer, no quarto.

Minha avó veio do quintal de trás da minha casa, onde cuidava das frutas que lá haviam, amoreira, figueira, pessegueiro, tomateiro, etc.

Ela ficou parada olhando o estrago, e nos apanhou rapidamente, nos arrastando para fora da casa, ao quintal das frutas de onde viera.

Ficamos mudos por algum tempo, sentados na calçada do quintal com ela nos segurando pelas mãos, nos abraçando, e, em dado momento, ela falou para ficarmos por lá, pois ela iria falar com minha mãe. Assim fizemos, e começamos a colher alguns figos maduros.

Totai me perguntou:

- E agora Maneco, como iremos nos livrar dessa?

Eu só balancei a cabeça sinalizando negativamente. Por lá ficamos, sem emitir som que fosse, totalmente mudos.

Minha avó permaneceu um bom tempo na parte de cima da nossa casa, provavelmente em conversa com minha mãe, nos defendendo da situação, ponderando com minha mãe e Dona Joana, que ainda (graças a Deus) estava por lá.

Não sei até hoje o teor das conversas, mas acho que foi ótimo, pois dessa vez, não passamos por uma seção de espancamento e tortura, que seria de praxe. Atribuo isso à presença da Dona Joana e à pronta intervenção da minha avó "Lála".

Logo fomos chamados para subir, tomar banho e jantar, e nada aconteceu, ainda bem. Naquela noite, iríamos dormir sem dores, e sem medo.

Meu avô, que morava conosco, logo chegou do trabalho, e foi logo nos escalando para irmos à mercearia do Sr. Martins para comprarmos alguns doces. Ele sempre fazia isso. Raramente estava em casa, pois viajava constantemente pela empresa que trabalhava, onde ocupava o cargo de diretor de vendas de automóveis “Willys” que logo se transformaria em “Ford”.

Muito brincalhão que era, foi logo fazendo piada da quebradeira que eu e meu irmão havíamos promovido na cristaleira da Dona Leny. Ele e minha mãe não se falavam, porque ele não aprovava o jeito que ela nos tratava, e por esse fato, já haviam tido várias discussões feias.

Meu avô era pai do meu pai, e minha avó, era mãe da minha mãe. Ambos sempre nos ajudaram muito, em tudo, como podiam.

Meu avô dormia no mesmo que nós quatro ocupávamos. Ele era muito alegre e sempre ficávamos cantando e dançando no imenso quarto da grande casa que morávamos. Era muito inteligente, e nos ensinava sobre relacionamento humano, sempre contando os casos de suas viagens de negócios. Ficávamos muito atentos às suas falas, tudo que falava sobre educação e respeito para com as pessoas, principalmente com os mais velhos. De vez em quando, ele jogava “Dama” ou “Ludo” conosco, era uma pessoa muito boa de coração, e sempre nos aconselhava a sermos honestos e preservarmos nosso caráter acima de tudo.

A noite foi muito boa, mas no dia seguinte, pela manhã bem cedinho, aconteceu uma coisa terrível.

Meu avô saíra bem cedinho, acho que umas 04h00 da manhã.

Com isso, minha mãe se levantou cedo, e foi para o nosso quarto, onde, de posse de uma chinela de plástico, da marca “Verlon”, que me lembro bem até hoje, desferiu um tremendo golpe em meu rosto quando eu ainda dormia. Nem teve o cuidado de me acordar, e sentou uma lapada no meu rosto, que eu tive a impressão de que havia caído de uma grande altura e batido com a cara no chão, e com muita força. Não conseguia abrir o olho do lado atingido pois ardia muito, e na minha cabeça, imediatamente crescia um caroço enorme, ao mesmo tempo que um tremendo zumbido estridente invadia o meu ouvido.

Mas não contente, ela me tirou da cama e me deu várias porretadas com aquela maldita sandalha, que mais parecia um pedaço de madeira.

Foi terrível, e depois de ser muito espancado, ela me atirou contra a camiseira, um móvel enorme, com muitas gavetas, todo em madeira. Com aquela violência, me choquei contra o móvel e bati com o queixo, e mais um talho de presente. Não desacordei, e com o olho direito aberto, pude ver ela acordando meu irmão e sentando o sarrafo nele também.

Depois do espancamento, ela ainda berrando, esclareceu que era a primeira de várias surras que levaríamos por termos destruído a cristaleira e suas lembranças do casamento. Daí, pude perceber que estávamos ferrados, sem saída.

Após a primeira de muitas surras prometidas, ela se foi para o reduto que habitava, e minha avó, veio correndo para nos ajudar, mas já era tarde, já tínhamos apanhado pra valer.

Pior do que isso tudo, foi quando olhei no espelho do banheiro e pude ver que meu rosto estava todo preto do lado esquerdo, inchado e cheio de sangue pisado em toda a face, e parte da orelha, com o olho muito preto e fechado, por causa do hematoma que se formara. Confesso que fiquei muito assustado e despenquei a chorar.

Minha avó, correu providenciar uma bolsa de gelo para colocar sobre a região atingida, ela também chorava silenciosamente, e eu podia sentir seus soluços.

A marca “VERLON” ficou gravada em meu rosto muito inchado e roxo escuro. Havia grande área com sangue pisado e isso causava a sensação de um peso estranho, e ardia por dentro.

Aquilo, certamente iria me causar sérios problemas na escola. Os coleguinhas iriam explorar muito aquela ocorrência. Criança é cruel, não perdoa nada! Tudo é motivo para gozação, para o tal de “buling”. Não poderia contar a verdade, tinha muita vergonha e muito medo do que aquilo poderia causar.

O dia havia perdido a graça. Ficaria dentro de casa até a hora de ir para a escola.

Meu irmão estava com muitos caroços na cabeça, mas a cabeleira era suficiente para camuflar.

Eu, não tinha como esconder, teria que aguentar as perguntas e mentir, mentir e mentir...

Minha avó disse que iria falar com meu pai para tomar providências quanto às atitudes da minha mãe em relação a nós, e os constantes espancamentos.

Tudo aconteceu sem meu pai saber, pois ele cumpria escalas de serviço do tipo 24 horas aquartelado, e depois do plantão, tinha que assumir outro trabalho, em um outro lugar, tudo para complementar o salário, que naquela época já era insuficiente. Policial sempre enfrentou esse problema, e vem se arrastando até hoje, passados mais de meio século, verdadeira vergonha!

Na escola, enfrentei os coleguinhas, as professoras e logo fui parar na diretoria. Queriam saber como tinha arrumado aquela lesão enorme no rosto, e foi daí que uma das professoras, muito meiga que era, e horrorizada com a situação, alertou sobre a marca que tinha ficado estampada em meu rosto, “VERLON”. Isso era a marca de uma sandália da moda, na época, tal como a “Melissa” hoje; mas era feita de um plástico bem duro, acredite!

Depois de muitas falas e conversas paralelas, pude notar que minhas mentiras contadas sobre queda de uma escada, não havia convencido.

Ficou, ali, decidido que chamariam meu pai para questionarem a respeito do que teria acontecido comigo. Confesso que o medo tomou conta de mim, aliás, esse tal de medo nunca havia me deixado, já fazia parte do meu ser.

Quando o sinal tocou, para irmos embora, eu estava em pânico, mas minha avó, que sempre nos levava à escola, e nos buscava, havia entrado e estava na porta da sala de aula. Corri pra junto dela, e fomos buscar meu irmão para irmos embora.

No caminho, ela me falou que todos sabiam da verdadeira história, e logo minha mãe seria convocada para ir se explicar junto à direção da escola.

Com essa novidade, eu fiquei mais apavorado ainda.

Cheguei em casa e fui direto para o quarto, me enfiei embaixo da cama e por lá fiquei, até que minha avó, depois de notar meu sumiço, me achou e de lá me tirou.

Aquele dia, jantei no quarto, não podia me arriscar a sair e encontrar a fera.

Estranho foi a atitude do meu pai, que viu o estrago, mas fez de conta que não viu. Até hoje estou com essa questão em minha mente, sem explicação...

Com o passar dos dias, minha avó colocava um bife sobre a enorme bolha roxa. Acho que foi eficaz, pois logo desapareceu a pior parte, ficando alguns pontos negros que foram desaparecendo bem devagar. Tomava arnica todos os dias, pois diziam que era bom para dissolver os coágulos que se formaram.

Só sei que isso, foi muito chato. Quando ia comprar alguma coisa na mercearia, as mulheres do bairro que por lá também iam fazer compras, falavam muito sobre a agressão que eu havia sofrido. Chamavam minha mãe de cadela nojenta, louca e outros adjetivos não muito bonitos de se dizer.

Mas o lado bom disso, eram os mimos que aquelas mulheres me davam. Compravam bolinhos e chocolates para me deixar feliz. Eu os recebia, agradecia, e sempre dividia com meu irmão, afinal ele também tinha tomado uma senhora sova.

A quebradeira nos custou muitas lágrimas, vergonha, dores físicas e muitos calos emocionais.

Não sei o que se passou na escola, mas sei que os meus pais foram até lá, e tiveram que falar com o conselho escolar.

Quanto às providências, não soube de nada. Apenas ficamos livres de surras por uns dois meses, pelo que me recordo. Um tempo de sossego e trégua.

O que pensei não fosse acontecer, muito me frustrou, pois além da surra que levamos, eu tive que amargar muitas situações que me fizeram ficar extremamente perturbado e triste.

Difícil ficar ouvindo as pessoas falarem de você como se você não estivesse presente. Falarem barbaridades de sua mãe...

Tudo isso foi muito revoltante, mas foi a realidade, que por muito tempo me atormentou. Hoje, consigo contar essa história com certa facilidade, e até entendo que minha mãe tinha sérios problemas, que nunca foram levados em conta, principalmente pelo meu pai, que deveria ter buscado um tratamento adequado para ela, e quiçá para ele também.

Claudio Falcão

(Contando histórias)

25/01/2024

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 26/02/2024
Reeditado em 26/02/2024
Código do texto: T8007663
Classificação de conteúdo: seguro
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