"Dor, e muita vergonha..."

Um dia de sol maravilhoso, imponente, e com um céu azul, que mais parecia uma pintura, sem sequer uma nuvem para manchar aquele azul maravilhoso.

Gostava muito desses dias, principalmente quando meu pai estava de folga em casa (coisa rara), pois íamos ao “Campinho da Portuguesinha”, jogar uma boa pelada.

Tínhamos uma linda bola de couro, número “5”, a qual chamávamos de “Bola de Capotão”, que tinha que ser esfregada com sebo, para conservar o couro.

Futebol no campo era muito bom! Meu pai ficava no enorme gol, e nós chutávamos, era uma brincadeira excelente, um ótimo momento de descontração e muita alegria.

Mas naquele dia, que tudo apontava para uma pelada no campinho, não aconteceu. Meu pai resolveu fazer uma visita à sua irmã, a tia Clair, meus primos Sidney e Elizete, e seu cunhado o tio Orlando. Eles moravam no centro da cidade de São Paulo, bem próximo à Praça Princesa Isabel.

A notícia de irmos ver meus tios e primos foi ótima, gostávamos deles, e minha tia, em especial, sempre gentil e atenciosa. Todas as vezes que íamos até lá, ela nos agradava com muitas palavras de incentivo, de carinho, e com guloseimas deliciosas, todas feitas por ela. Tia Clair tinha mãos mágicas para os doces, era ótima doceira! Fazia um arroz doce que era espetacular, só dela, excepcionalmente saboroso!

Então lá fomos nós, no “Jepp Willys” (Jipão) do meu pai. Particularmente, eu adorava andar naquele carro, sem capotas, com o vento no rosto, uma sensação de liberdade incrível. Minha mãe reclamava do vento o tempo todo. Meu pai não poderia deixar minha mãe de fora dessa visita, então, lá estava ela, apesar de sempre ter presenciado, várias vezes, ela falando mal da cunhada, minha tia Clair. A enchia de defeitos e sempre a criticava, fosse pelas roupas que ela usava, fosse pela maquilagem, ela sempre tinha algo a dizer sobre a minha querida tia, eu não aprovava aquela postura de maneira nenhuma.

Estávamos a caminho e como de costume, minha mãe, aos berros, ordenava silêncio total no carro. Isso era sempre que saíamos e ela se fazia presente, coisa insuportável.

Tentávamos ficar de boa, sem falar nada, mas o riso crescia dentro por dentro, fermentando minuto a minuto, e, de repente, explodíamos em gargalhadas sem nenhum sentido, não sei explicar por que, mas era assim que acontecia, para nosso azar. Resultado disso era um festival de bofetadas e diversas unhadas nos braços quando não conseguia pegar as orelhas, ela não perdoava mesmo! Fora isso tudo, quando desembarcávamos, um a um, ela se encarregava de alcançar as ditas orelhas e esticá-las, torcendo-as, o quanto podia, e olha que aquilo doía muito, mas eu e o “Totai”, não chorávamos mais, aguentávamos firmes e fortes. Não sei como tenho as orelhas pequenas e coladinhas, pois se dependesse dos puxões e torcidas que levei, acho que hoje, poderia até tropeçar nelas.

Campainha do prédio acionada pelo meu pai, e lá iríamos nós para o apartamento da minha tia Clair.

No elevador, minha mãe não deixou pra trás a sua ira, e nos deu vários croques na cabeça, sempre dizendo:

- Seus índios, se comportem, se não mato um de cada vez! Ouviram?

O silêncio era sepulcral, nem sussurrávamos, pois os croques eram doloridos demais. Eu entrava em apneia total. Meu pai fazia de conta que não via e nem ouvia nada, era de amargar ver a sua indiferença. Não podíamos contar com a proteção dele, nunca mesmo...

Minha tia Clair abriu a porta com um sorriso enorme, como sempre. Nos abraçou e beijou. Ela, sempre muito bem cuidada, linda e maquilada, perfumada, e muito bem vestida.

Minha prima Elizete e o meu primo Sidney sempre muito bonzinhos, eram mais velhos do que meu irmão Clóvis, o “Totai”.

Fomos todos para a sala, nos sentamos no sofá, e por lá ficamos.

Minha tia Clair foi para a cozinha com meu pai e minha mãe. Nós, todos, ficamos sentadinhos calados por algum tempo, mas criança é criança, não para de jeito nenhum. Em poucos minutos estávamos todos brincando no chão com meus primos, jogando memória, da “Grow”. E claro, o barulho aumentou com nossa falação e com as risadas que tomaram o ambiente. Isso foi o suficiente para Dona Leny ficar irritada e vir até a sala, onde não poupou esforços para nos socar de todas as formas na frente dos primos e com minha tia Clair assistindo. Essa atitude foi suficiente para que ela censurasse os terríveis atos de minha mãe, e a repreendesse severamente, e também ao meu pai, irmão dela, pois ela era a primogênita e levava isso muito a sério. Meu pai baixou a cabeça e não retrucou, mas minha mãe, desabrochou toda a má educação e raiva em cima da minha tia, isso foi terrível. As agressões em um palavrório inadequado, dirigidas à minha tia, foram horríveis. Me recordo ainda da minha tia ter ficado muito sentida e indignada com tudo aquilo. Mas depois que minha mãe extravasou a raiva, tudo ficou quieto, e nós com muita vergonha e medo.

Minha tia deu as costas e foi à cozinha, voltando à sala com um lindo manjar branco de coco e ameixas pretas. Passou a encher tigelinhas de vidro e nos presenteou, dizendo para comermos e esquecermos as idiotices provocadas pela minha mãe.

Eu estava extremamente encabulado e envergonhado, não sabia o que fazer, minhas orelhas, doídas das agressões sofridas, queimavam.

Passamos a saborear aquela delícia de doce que minha tia havia feito. De repente, eis que surge na porta da sala, novamente, minha mãe. Passou a nos apontar e dizer:

- Olha como comem, parecem bichos, são verdadeiros índios, sem nenhuma educação; parece que nunca comeram isso! - esses eram os comentários que mais me deixavam envergonhado e confesso, me desestabilizavam totalmente.

Aquelas observações provocavam risos em meus primos, mas nos deixavam bastante deprimidos. Não obstante a isso tudo, em dado momento, ela se aproximou do Totai, e lhe desferiu um tremendo bofetão na nuca, e com a violência da porretada ele bateu com a testa na mesinha de centro que tinha uma pedra de mármore, arremessando a tigelinha com a calda e o doce pra longe, e essa, com a queda, se espatifou no chão de porcelanato da sala. Mais uma agressão sem sentido, que se juntaria a tantas outras sofridas.

Meus primos, quando viram aquilo, correram para seus quartos. Já nós, ficamos esperando o desenrolar daquela perversa façanha da Dona Leny.

Minha tia veio correndo, e logo foi reprimindo o ato da minha mãe, e tentando acalentar meu irmão. Eu, fugi para um canto da sala onde havia um piano, e me encolhi ao máximo lá por baixo. Meus irmãos Deda e Saulo, largaram as tigelinhas com o doce e correram para o sofá, onde permaneceram estáticos.

Era de se esperar que meu pai tomasse uma atitude, e foi o que ele fez. Assim que minha tia acabou de acalentar o Totai, ele anunciou:

- Vamos embora! Chega! Essas crias são infernais mesmo Leny!

Confesso que não entendi nada, e até hoje estou pensando naquelas palavras ditas por ele, meu pai nunca nos defendeu!

Com aquela decisão de irmos embora, minha tia se calou e baixou a cabeça. Então fomos em fila para fora do apartamento, e tia Clair nos beijou e abraçou, um a um, e ficou em lágrimas. Me lembro bem dela enxugando as lágrimas que mergulhavam no ar, brotando dos seus olhos tristes.

Fomos para o carro que estava estacionado ao meio fio da rua, entramos calados e sentamos.

Minha mãe, ainda demorou um pouco para aparecer, foi a última a deixar o prédio da minha tia. Meu tio Orlando não estava, pois encontrava-se pelo interior de São Paulo, a trabalho.

Da casa da minha tia, até nossa casa na Vila Mariana, demorava aproximadamente uns 20 minutos. Logo estaríamos em casa.

Finalmente chegávamos em casa. Isso era bom, mas ao mesmo tempo era assustador, pois Dona Leny poderia ter outro ataque de fúria e nos espancar, por causa dos acontecimentos na casa da minha tia, tudo era possível naquele fatídico dia.

Desembarcamos do “Jeep” e fomos direto para o quintal. A intenção era fugir de um provável ataque da minha mãe. Por lá ficamos até anoitecer, quando minha avó nos chamou para o banho.

Depois do banho e bem alimentados com uma sopa de carne e legumes, passamos ao jogo de “Ludo”, eu, Totai e Deda, o Saulo, não se juntava ao nosso grupinho, ficava no chão do quarto de minha mãe, brincando sozinho, era sempre assim.

Na sala estávamos no auge do jogo, dadinhos rolando, peças caminhando para a chegada, uma alegria só, mas isso logo teria um fim drástico.

Dona Leny, saiu do covil com sua vestimenta de seda amarelada (camisola), que fora feita de seu imenso vestido de casamento, eu havia visto na foto, tinha uma cauda imensa, e serviu bem para a confecção da camisola assustadora que ela usava, com suas mangas que pareciam asas de dragão dos contos infantis.

Parada em frente ao tabuleiro de “Ludo”, ela meteu o pé em tudo, e furiosa agarrou o “Totai” pelos cabelos cacheados, levantando o pobre que estava sentado no chão, e lhe desferiu uma imensa porretada com uma escadinha de madeira, em peroba, a qual fazia parte de um caminhão de bombeiros da “Estrela”, que tínhamos ganhado no Natal do ano anterior. Daquela primeira porretada, vieram mais e mais, foram várias. Coitado do meu irmão Clóvis Oscar, ele não tinha como escapar das garras daquela fera incontrolável.

Eu e o Esdras (Deda), corremos para os fundos da casa, e procuramos nos esconder, enquanto minha avó corria para auxiliar o infeliz.

Foi um terror! Havia começado tudo novamente, e por causa da tal tigelinha que foi quebrada na casa da minha tia Clair. Até hoje, sinto muito pela injustiça que meu irmão sofreu, pois, a tigelinha só foi destruída porque minha mãe havia metido uma tapona na cabeça dele, e ele havia perdido a mão da tigelinha quando sapecou a mesinha com a testa. Portanto, ela é quem teria causado todo o estrago.

O Deda e eu, saímos do esconderijo e fomos direto para a cama. Melhor deitar e se cobrir com dois cobertores, pois ela poderia surgir a qualquer momento, pois meu pai não estava em casa, havia ido para o plantão, e ficaria fora por mais de 24 horas. Então ela aproveitaria a ausência dele para tocar o terror.

Nesse episódio, eu fiquei com muita vergonha dos meus primos, da minha tia, e o sentimento de injustiça que brotara em meu coração ainda mais forte, aliás, esse sentimento já estava bem amadurecido em mim.

Passei a me questionar constantemente sobre “Justiça”, que eu ainda não conseguia entender perfeitamente, mas já conseguia identificar o mau caráter das pessoas, os atos dissimulados, o deboche, a falta de honestidade, e principalmente os atos criminosos, mesmo sem conhecer “Leis”. Era tudo muito prematuro, mas já notava claramente o que se podia ou não fazer.

A humilhação em relação a nós, os filhos, era frequente. Isso ficou cravado em minha alma.

Um mau exemplo deixado pela minha mãe, a ser visto por todos, e que nunca seja adotado por quem quer que seja!

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 29/02/2024
Código do texto: T8009914
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