"O anel"

Madrugada de muitas trovoadas assustadoras. Naquele dia a temperatura beirava os 11 graus e caindo, estava bem frio. As cobertas faziam toda a diferença, além de nos causar a impressão de nos abrigar das inúmeras explosões dos trovões. Como de costume, a energia elétrica já faltava havia mais de hora.

Meu avô estava em casa, e no quarto onde dormíamos ele, muito falador, conversava conosco. Contava suas aventuras de viagem. Falava que quando chovia e trovejava, “São Pedro” estaria mudando os móveis de lugar, e essa fala nos fazia sonhar. Ficávamos com aqueles olhares detidos no ar, sem alcançar nenhum objetivo.

Aquela noite era pra ser mais uma noite de histórias e gargalhadas, só que não, pois não demorou muito para que uma gritaria invadisse nosso quarto. Era minha mãe, brigando com minha avó, falando impropérios e blasfemando muito. Xingava tudo e todos. Nada escapava da sua boca louca de ódio!

O motivo daquela gritaria, e de toda a falta de respeito dela para com a sua mãe (vovó Lala), era porque teria chegado uma correspondência da Caixa Econômica – setor de penhores, informando o prazo para que fosse quitada uma tal de “Cautela” sobre uma joia, pertencente à minha avó, coisa de família, que ela teria emprestado ao meu pai, para que ele penhorasse e conseguisse um dinheiro, que sinceramente, nunca soube pra que, e nem em que ele teria usado. Fato concreto, foi que ele não pagou as parcelas do penhor em dia, e a consequência seria a perda da joia, que certamente seria leiloada, caso não fosse efetuado o pagamento da cautela do penhor.

Gritando freneticamente e fazendo coro com os estampidos das trovoadas, e meu avô, não falava nada, só olhava a histérica sem controle.

Minha avó, chorava e dizia que era uma joia que seu pai, meu bisavô, havia lhe presenteado antes de ir de vez para a Suíça. Dizia que era inadmissível que deixassem perder a joia. Era um anel de família, bem valioso, mas para minha avó, o valor mesmo era sentimental.

Nós quatro, nas nossas camas, espiávamos a situação pelas bordas das cobertas. Não tinha como sair dali, pois se tentássemos sair, certamente ela nos pegaria com suas unhas e nos espancaria, como sempre. Então, o remédio era ficar de boa ali mesmo, só espiando quando surgia uma brecha.

Foi numa dessas brechas que pude ver que minha mãe segurava uma faca de cortar carnes, daquelas de cabo branco, fininha e bem nervosinha de corte, que os açougueiros usam para desossar as partes de bois quando chegam do frigorífico.

Passei a ficar muito incomodado com aquilo. A cena era de arrepiar. Ela aos gritos, xingando muito minha avó, e esta, recolhida ao canto do quarto com a porta fechada. Para piorar, estávamos à luz de velas (duas), que meu avô havia acendido assim que a energia foi suspensa. Tudo estava ficando muito tenso, muito assustador!

Meu avô, em dado momento saiu da cama e foi pedir calma para a minha mãe, totalmente descontrolada. Eu espiava aquela situação terrível.

Meus irmãos se fecharam nas cobertas e dava a impressão estarem petrificados, pois nada se mexia. Eu, muito xereta, ficava espiando a coisa toda, e o que mais me preocupava era a faca de açougueiro de posse da Dona Leny, minha mãe. Com aquele crescente descontrole, ela poderia ferir minha avó, meu avô, e sabe-se lá o quê, ela poderia causar um grande mal naquele instante, que já durava mais de meia hora de gritos e descontroles. Achei que ela estava em transe total, fora de si mesma, tomada pelo maligno, pelo demônio, só podia...

Meu avô, agora ponderava para ela se acalmar e soltar a faca. Ele dizia com muita calma, para ela conversar, pois, tudo se resolveria da melhor forma possível. Era uma aula de vendas ao vivo. Ele era bom de papo, sabia abordar com calma e muita paciência.

Passados alguns instantes, ele conseguiu fazê-la se calar. Pude ver claramente minha mãe olhando para meu avô com dois faróis verdes, arregalados, e avermelhados de sangue na silhueta ocular. Daqueles olhos, brotavam brasas incandescentes, era assustador! Paralisada e fumegante ela ficou por alguns instantes, e de repente, ela colocou a faca afiadíssima em sua própria garganta, anunciando que cortaria a goela até a morte.

Nesse momento, eu pulei pra fora da cama e despenquei a chorar, pedindo que ela não fizesse aquilo. Fui seguido pelo Clóvis Oscar, o Totai, e ela ficou nos olhando por algum tempo e de repente, lançou a faca na porta de um dos guarda roupas, onde ela ficou bom pedaço.

Meu avô correu e tirou a coisa de lá, arremessando-a para cima daquele monstro de madeira de quatro corpos. Foi um tremendo alívio, que não perdurou, pois ela voltou a gritar com minha avó, dizendo que ela tinha perdido mesmo aquele anel de lata, e que nunca mais pediria nada para ela. Saiu em seguida, batendo violentamente a porta do quarto.

Nós, eu e meus irmãos, pudemos nos levantar, e Totai, Deda e eu, nos abraçamos e ficamos chorando. Já o Saulo, continuou embrulhado nas cobertas e não deu nenhum suspiro.

Meu avô foi ajudar minha avó a se levantar do canto do quarto, e foram para fora conversar.

As velas estavam no fim quando a energia voltou. Luzes acesas, finalmente.

Rapidamente armamos o jogo de “Ludo”, e começamos a jogar, mas em silêncio sepulcral, pois ela poderia voltar, e a coisa ficaria bem difícil pra nós três, isso já sabíamos.

Meu pai estava fora nessa noite, de plantão 24 horas, e claro, nada saberia do ocorrido, pois minha avó não falava com ele. Quem poderia falar com ele a respeito do ocorrido era o pai dele, meu avô Clóvis, mas não sei se o fez...

Jogamos umas partidas; minha avó veio nos dar beijinhos e carinhos de boa noite.

O som das chuvas que se mesclava com as trovoadas, engolira o que restara daquela tumultuada noite.

No dia seguinte, ao nos sentarmos para o café, pude notar a profunda tristeza no rosto da minha avó. Ela sempre falava muito do pai dela. Nos contava o quanto ele era rígido e exigente, mas tinha um coração enorme. Era um imigrante suíço alemão, muito inteligente, sitiante na cidade de Itapeva – SP. Era um pequeno agricultor, criador de aves e alguns outros animais. Homem honesto e trabalhador que era, casado com uma suíça francesa, criaram uma família de cinco filhos, dentre eles, minha avó Ella Agnes, vovó “Lála” como a chamávamos.

Sobre a joia, o anel, este era um anel com brasão de família, que havia pertencido ao bisavô do meu bisavô, vinha de épocas bem remotas.

Enfim, soube algum tempo depois, que o anel teria ido a leilão pelo penhor, e minha avó, teve que amargar a tristeza em seu peito.

Nessa época, eu contava mais ou menos uns 7 anos de idade.

Nem sempre as agressões eram surras e mais surras (físicas), havia também as grandes e agressivas pegadas emocionais, produzidas pela histeria incontrolável de Dona Leny, minha mãe, e que muito nos assustava.

Mas, a vida que seguia; tínhamos esse grande problema para nos assombrar, e o jeito era aguentar, e, ficar invisível quando desse.

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 14/03/2024
Código do texto: T8019766
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