OS SONHOS DE LILI

Pensa em uma pessoa educada, gentil, carinhosa com todos que passaram ou estão em sua vida. Refiro-me a Lili, alguém que, apesar de ser guiada por seu bom coração, não é tola, não se dobra e não se deixa ser influenciada por nada que fira o que ela tem de melhor: o caráter.

Dona de uma simplicidade admirável, ela nunca teve sonhos megalomaníacos, mas sempre se perguntou por que, por exemplo, nos ensaios e durante os desfiles escolares, nunca a escolhiam para ser “pelotão”, ou seja, para ser a pessoa que iria à frente dos colegas que marchariam enfileirados. Será que tinha a ver com sua altura, com a cor morena da sua pele, com os seus cabelos crespos? Afinal, as escolhidas sempre eram as mais altas, mais esguias, normalmente brancas, de cabelos lisos... Tudo dentro da “normalidade” que ainda impera entre aqueles que ignoram que certos padrões estéticos de beleza têm a ver com a herança que nos foi legada pelos nossos colonizadores: padrão europeu.

Dessa forma, no dia da “parada” ela era colocada em alguma fila do meio, isso quando não a colocavam “na rabada”. Até para ser fotografada por alguém era difícil ser reconhecida no meio das muitas cabeças de colegas, por isso pouca ou nenhuma foto tem dos tempos em que todos os alunos eram obrigados a desfilar, normalmente, marchando, no dia de Linhares ou no 07 de setembro.

Certo dia, na escola, nas aulas de português, aprendeu a diferença entre os artigos definidos e indefinidos: “ser UM é diferente de ser A. O primeiro é indeterminado (pode ser qualquer um), o segundo se evidencia, se destaca, é determinado”. Esse conhecimento deve ter sido decisivo na hora de escolher que tipo de profissional seria, quando optou por seguir carreira no magistério. Desde então, tem se destacado por ser A “tia” mais carinhosa, a mais querida, a que mais sabe conversar e sabe reforçar a autoestima das suas crianças, que, aliás, adoram-na.

Ao longo de sua vida, ela nunca se esqueceu da aula sobre os artigos e nem do sonho de desfilar, como forma de superar as vezes em que fora preterida. Em face disso, começou a pensar em onde e como realizaria o seu sonho. Eureka! Carnaval! Desfile de escolas de samba!! Ocasião e local perfeitos, pois na avenida pobres ou ricos, feios ou bonitos, bem fantasiados ou peladas, todos têm direitos a serem felizes.

Além disso, é sabido que muitas escolas de samba lideram projetos sociais ligados à educação, cultura e saúde. Neles são oferecidos cursos, práticas esportivas e até encaminhamento ao mercado de trabalho. Perfeito!! Seria em uma delas que Lili realizaria seu sonho. Bastaria escolher uma agremiação...Qual delas? As mais famosas? No Rio, São Paulo ou Vitória? Qual seria o custo? Como fazer para comprar a fantasia?

Detalhou mentalmente o seu sonho... tinha de ser uma fantasia bonita, de preferência que cobrisse seu corpo, que tivesse algum esplendor... Fez as contas, consultou sua poupança de tantos anos e optou por desfilar na Vila Isabel, RJ, em 2020, com o enredo “Gigante pela própria natureza: Jaçanã e um índio chamado Brasil’’ . Não sairia barato, mas quando temos um sonho, precisamos decidir se iremos de “calça de veludo ou bumbum de fora”.

Como as economias davam para cobrir as despesas de fantasia, transporte e hospedagem, ela tomou todas as providências para no dia 24 de fevereiro de 2020, desfilar lindamente pela Marquês de Sapucaí. No início de fevereiro os Correios entregaram em sua casa um grande pacote, contendo a sua fantasia linda de “Bandeirantes”, comprada pela internet: calça preta, blusa verde de mangas bufantes vermelhas, punhos verdes, simuladores de botas, chapéu, plumas e adereços em formato de lanças.

No sonhado dia, após umas 12 horas de viagem Linhares – Vitória, ela finalmente, chegou ao Rio de Janeiro, faltando menos de seis horas para estar na concentração: 17 horas, embora o desfile só fosse acontecer às 22h30min. O tempo era suficiente para chegar ao hotel, tomar um banho, colocar as pernas para o alto um pouquinho, vestir parte da fantasia, tomar um Uber, ajeitar no banco traseiro o chapéu, as plumas, as lanças da fantasia e rumarem para a concentração.

Uma vez lá, seus olhos se encantavam com a beleza dos carros alegóricos, das diferentes e lindas fantasias e dos corpos seminus, também. De repente ela começou a sentir o quanto a sua fantasia era quente....e se arrependeu de não ter preferido uma de índio, bem mais leve, fresca e barata. Nessa altura, não havia mais o que fazer: o negócio era aguardar as quatro horas que faltavam para o desfile começar. A beleza em todos os lugares era tamanha que ela conseguiu esquecer-se do calor...

Por volta de 22horas o seu coração disparou ao ouvir a voz do intérprete Tinga, gritar e cantar: “Alô comunidade! Canta! Canta! Sou da Vila, não tem jeito, fazer samba é meu papel. Fiz do chão do Boulevard meu céu”...., Seus pés começaram a sambar freneticamente e a alegria tomou todo o seu corpo.

Às 22h30min, em ponto, a Vila entrou na Marquês de Sapucaí e Lili achou que o seu coração iria sair pela boca, principalmente, quando sua ala passou em frente à bateria. Ela ainda se lembrou das vezes em que não a escolheram para ser “pelotão” nos desfiles escolares de Linhares, mas após uns 350m percorridos, exatamente na metade do desfile, seu corpo começou a fraquejar, pois sua fantasia, além de quente, parecia pesar uma tonelada.

Quase arrastando os pés, no último terço do desfile, Lili passou a ter outros sonhos: ser conduzida em uma cadeira de rodas, em uma maca ou no colo de alguém.

Seu corpo cansado, a hipertermia e os calos nos pés fizeram com que desmaiasse. Acordou no hospital, depois de tomar uns dois litros de soro contendo, inclusive, relaxantes musculares. Após um período de observação, foi levada para o hotel, deixando o chapéu e grande parte da fantasia para trás.

Às 10 horas do dia 25 de fevereiro, Lili já estava na Rodoviária Novo Rio, embarcando para Linhares. Durante todo o trajeto de volta ela dormiu e, curiosamente, sonhou que, finalmente, uma professora a convidava para abrir o desfile, levando o escudo da sua escola de outrora.

Em casa, refletiu sobre tudo que vivera, sobre as causas e sobre as despesas que tivera. Não se arrepende de nada, mas de uns tempos para cá tem preferido desfilar acompanhando a nossa querida bandinha de Conceição da Barra, cujo repertório de marchinhas é bem mais adequado a quem não está mais preocupado em desfilar.

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 25/03/2024
Reeditado em 28/03/2024
Código do texto: T8027578
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