Uma vez, na "Páscoa"

O mês prometia coisas boas. Era abril, e a “Páscoa” se aproximava.

Naquela época, ganhávamos ovos de chocolate, e vinham recheados de balas e bombons. Os ovos eram grossos e muito saborosos. Havia um chocolate, na época, que era caro e muito cobiçado, chamava-se “Sönksen” (¹).

Minha mãe sempre ganhava um ovo tamanho família, da “Sönksen”. Nós, as crianças, também ganhávamos ovos de tamanho grande, da marca “Lacta” (²), e às vezes, alguns da “Pan” (³).

Particularmente, eu, adorava o sabor do chocolate “Lacta”.

Era uma quinta feira que precedia o dia santo, sexta feira, e a ansiedade pela aproximação do “Domingo de Páscoa”, a concentração nas nossas brincadeiras ficava meio atrapalhada.

Havia um cheiro diferente na casa. As comidas estavam sendo preparadas pela minha mãe e pela minha avó. Ficávamos felizes em ver a Dona Leny na cozinha, fora do covil, quer dizer, do quarto. Nutríamos a esperança, que ela saísse de lá de uma vez por todas, e passasse a conviver com a gente, afinal, éramos suas crias.

As brincadeiras eram inúmeras. Sempre causando algumas confusões entre nós, mas tudo dentro do nosso lúdico mundo dos “Super herois”, por nós criado com muito capricho.

Subíamos na mesa gigante da sala, e de lá, voávamos para o tapetão forrado de almofadas. Era uma farra legal, até que algum de nós se machucasse, daí parava tudo, e não era permitido chorar, gritar, não podia dar nem um pio sequer, pois despertaria o ódio em minha mãe, e o resultado seria uma catástrofe total.

Mas naquela tarde, com a casa cheirando delícias da culinária caprichada para o dia seguinte, um grito de dor tremendo rompeu o silêncio e ecoou pela casa toda.

Meu irmão “Totai”, havia pulado da mesa e caído sobre o móvel, bem no canto entalhado, e tinha quebrado o braço em vários lugares. Dava pra ver o osso do antebraço que insistia em querer romper a pele. Sua mão estava com a palma pra cima, o braço tinha várias fraturas, e o ombro se transformou em um tremendo caroço assustador...

A correria foi imediata. Minha avó, uma vizinha que por lá estava, e minha mãe, todas paradas e olhando meu irmão no chão esgoelando de dor. Eu, bem próximo dele, apenas tirei com cuidado a sua capa de super heroi, e me afastei de imediato.

Com minha capa de super homem, me posicionei com as mãos na cintura, e fiquei olhando o que seria feito com meu irmão.

Minha avó, correu para ele, mas ele só gritava de dor. Então, resolveram chamar uma rádio patrulha, era o único recurso disponível naquela época.

Depois de uns 20 minutos, lá estavam os patrulheiros, e fizeram o socorro do meu irmão ao Pronto Socorro do Hospital São Paulo.

Minha avó e a vizinha foram juntas para o pronto socorro na Vila Mariana. Esse hospital era o mais próximo de casa.

Assim que saíram, eu fui puxado pelas garras da Dona Leny, e levei diversos tapas na cabeça, na cara, e sei lá mais onde pegou. A surra começou com taponas diversas e terminou com o tal cinturão de couro repleto de ilhoses. Meu irmão Saulo, se encarregou de ir buscar o cinturão para ela terminar com a saga de espancamento. Confesso que naquele dia, senti inveja do meu irmão “Totai”, naqueles instantes de espancamento gratuito, desejei muito estar em seu lugar...

Depois do espancamento, ela se vestiu e foi para o pronto socorro. Eu, fiquei por lá, curtindo as dores dos terríveis cintadas e dos galos na cabeça, feitos pela fivelona quadrada do cinto da Guarda Civil de São Paulo.

Depois de umas duas horas, todos estavam de volta do hospital.

Meu irmão estava engessado, com colete de gesso e uma tremenda estaca para segurar o braço, sob o cotovelo, também todo engessado, assustador. Ele parecia uma múmia!

Minha avó veio em meu encontro, e me apertou contra seu ventre, perguntou se minha mãe havia me surrado, eu preferi nem falar, apenas sinalizei com minha cabeça que sim. Ela me levou para o meu quarto, e me falou para ficar por lá, pois estaria mais seguro.

O cheiro da casa já não era mais o mesmo. Havia um odor de hospital, cheiro de coisas de hospital, uma tristeza imensa em ver meu companheiro de brigas e brincadeiras, enfermo, com uma palidez assustadora e nítida em seu rosto.

Pude ouvir minha avó repreender minha mãe por ela ter agido mau no hospital. Segundo o que consegui ouvir, ela bateu na cabeça do meu irmão, mesmo ele estando todo quebrado. Isso fazia bem o seu estilo.

Só sei que naquele dia, a “Páscoa”, os ovos de chocolate, as comilanças, perderam a graça.

No dia seguinte, durante o almoço, uma super bacalhoada, iniciou-se uma conversa sobre os ovos de chocolate. Quem iria ganhar o quê? Só para esclarecer, os ovos que nós, os filhos, ganhávamos, eram comprados pela minha avó e pelo meu avô. Já os da minha mãe, eram presentes do meu pai. Ela ganhava os grandões da “Sönksen” e da “Lacta”. Não sei como, mas já tinha observado isso havia algum tempo.

Nós, fazíamos ninhos de palha nos pés da cama, e lá, o coelhinho colocaria os ovos, mas eu já sabia que não havia coelho nenhum, era minha avó, que colocava os ovos nos respectivos ninhos.

Ao acordar no domingo de páscoa, lá estavam os ovos, um da “Lacta” grande, e um da “Pan” menor. Mais uma vez, o cheiro de chocolate era marcante. Minha avó e nós, juntos e felizes, poderíamos compartilhar aquele momento de sossego e felicidade. Eu e meu irmão “Totai” e “Deda” (o menorzinho), juntamente com minha avó, passamos a orar o “Pai Nosso”.

Minha avó não era muito religiosa, mas orava com a gente sempre que podia. Era um ato de amor, de carinho sincero, que até hoje, quando me recordo, me emociono e meus olhos chegam a marejar...

Como não podia deixar de ser, minha mãe, no dia de “Páscoa”, saiu do covil, e começou a gritar feito louca, pois o seu presente, deixado pelo meu pai no sábado de aleluia, estava amassado de um lado. Nós nada tínhamos a ver com aquele incidente, mesmo assim, ela prometeu que nos espancaria, assim que passasse a “Páscoa”, essa promessa foi de amargar, mas graças ao bom Deus, ela nada fez naquele dia, e como a máxima dita: “...a esperança é a última que morre...”, não haveria de acontecer...

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(1) “Sönksen” não durou muitos anos, já que em 1904 Alfredo Richter veio a falecer. Sozinha na liderança da companhia, Alwine Sophia Sönksen decidiu vender a empresa ao capitalista (nome que se dava aos empresários à época) João Faulhammer. (https://saopauloantiga.com.br/sonksen/)

(2) “Lacta” A história de LACTA começou a ser escrita no dia 21 de janeiro de 1912, com a fundação da fábrica na Vila Mariana, em São Paulo, para garantir ao público brasileiro chocolates com a qualidade e sabor dos importados da Suíça. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lacta)

(3) “Pan” Chocolates Pan foi uma indústria alimentícia brasileira. Sediada em São Caetano do Sul, era especializada na produção de chocolates e doces.

Fundada em 1935 por Aldo Aliberti e seu cunhado Oswaldo Falchero, em São Caetano do Sul, a Chocolates Pan ficou conhecida pelos seus "cigarinhos de chocolates" que eram vendidos em caixas estampando um menino branco e outro negro, sendo comercializados como rolinhos de chocolates, para evitar que as crianças fossem induzidas ao tabagismo. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Chocolates_Pan)

 

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 01/04/2024
Código do texto: T8032758
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