Trote e Pensão

Mais um longo dia de trabalho e muitos cálculos.

Os dedos incansáveis sobre a calculadora que estralava feito doida.

Títulos e mais títulos de cobrança, que sacados anteriormente dos arquivos, colocados em ordem numérica decrescente, somavam os lucros do banco.

O trabalho era árduo, todos os dias, e sem parar engordando os caixas daquela instituição financeira. Tratava-se de uma carteira de crédito, ligada a um banco famoso.

Eu, e meu irmão Saulo, trabalhávamos naquela instituição financeira. Era raro nos falarmos, pois ele trabalhava na oficina de cortes de formulários, e eu, na carteira de crédito e financeira chamada “Credibrás”.

O serviço era maçante, pois pela manhã, sacávamos os títulos dos arquivos, mediante uma relação que vinha da tesouraria para se processar a devida cobrança.

Depois de sacar inúmeros títulos, estes haviam de ser colocados em ordem cronológica decrescente, número a número, que tinham seis dígitos, e depois, somar duas vezes todos eles, colocar a fitas da soma para conferência do setor contábil, e por fim, seriam enviados aos devedores para quitação, isso tudo via postal. Era um serviço bem desgastante.

Além de ter que aguentar um cara muito chato, que ficava de frente com as mesas de trabalho, gritando a todo instante por qualquer desvio ou conversa que surgia entre os colegas. Era irritante demais. Não citarei o nome do cretino, pois ele não merece nenhum destaque, mesmo que negativo.

O cara era magrinho, barbudo, ridículo e forçava uma fala grave e alta, um tremendo canalha que não fazia nada além de encher nossos ouvidos com palavras esdrúxulas e sem sentido. Esse ser se sentia o senhor dos escravos. Só lhe faltava o chicote.

Depois de mais de um ano de trabalho duro naquele lugar, que nem um refeitório e nem bares próximos tinha, e nos obrigando a providenciar marmita.

Muitas vezes, nossas marmitas tinham a mistura roubada por algum cretino, o que nos obrigava a comer somente o arroz e feijão que ficava na lata. Era de amargar!

Mas naquele dia, um fato iria transformar tudo, e pra pior, muito pior.

Por volta de 11h00, fui chamado pela chefe do setor, que me informou para pegar minhas coisas e ir imediatamente para minha casa, pois minha mãe, Dona Leny, havia sofrido um acidente e teria morrido. A informação teria sido dada pelo Sr. Jaques, dono de uma fábrica de cera que ficava em frente à minha casa. A chefe ainda me disse para passar no setor do meu irmão Saulo, para leva-lo comigo.

Imediatamente fui até o lugar das marmitas, apanhei a minha e a de meu irmão e passando no setor onde trabalhava, o chamei para irmos juntos para casa. Fui questionado por ele sobre o assunto, e falei sobre o acidente, o que bastou para ele se desmanchar em lágrimas. Seguimos para a avenida e apanhamos o ônibus que nos deixaria próximo de nossa casa. O trajeto do banco à minha casa era bem rápido, acho que uns 15 minutos, mas naquele dia, diante dos fatos, pareceu-me horas...

Finalmente chegamos à rua próxima da minha casa. Fomos correndo para ver o que havia acontecido, e pasmem, minha mãe estava em seu quarto, internada como sempre. Fomos ter com minha avó que lavava roupas no tanque do quintal interno da casa, e ela não sabia de nada.

O mais interessante foi que a notícia nos foi dada com riqueza de detalhes, até mesmo envolvendo um senhor que era proprietário de uma fábrica de cera, em frente à minha casa. Disseram que ele havia socorrido minha mãe, que fora atropelada em frente de casa, tudo não passava de uma tremenda mentira.

Ficamos estáticos com aquele trote, pois deveríamos dar satisfação aos chefes no banco, e como seria o entendimento deles nesse caso? Era preocupante. Um trote que poderia nos custar o emprego.

E como tudo que está ruim, ainda pode piorar, minha mãe saiu do quarto e se deparou comigo na cozinha. Era por volta de meio dia, e ela começou a questionar sobre a minha presença por lá, naquela hora. Diante da nervosa inquirição perpetrada por ela, falei a verdade, e foi a gota para ela começar a gritar e me chamar de vagabundo. Nessa época estava com 14 anos de idade, já trabalhava desde os 13 anos, e ainda não havia gozado nenhum período de férias. Além do mais, todos os meses, no dia do pagamento, era obrigado a dar a ela metade do salário, pois caso não o fizesse, não poderia mais entrar em casa. Isso era comigo, pois o Saulo não precisava dar nada.

Quanto ao resultado do trote, nada aconteceu. A chefia estava mais preocupada em gritar e cobrar produção, e não perguntaram nada, ainda bem, pois não poderia justificar o ocorrido.

Meu irmão Clóvis Oscar, trabalhava em uma indústria de óleo comestível, era “Office-boy”, e também dava metade do que ganhava para ela, todos os meses.

Houve dias piores, pois quando iniciei minha jornada de trabalho na “Casa Anglo Brasileira – Mappin”, atravessei sérios problemas quanto a essa prática de cobrança por ela estabelecida. Ganhava CR$ 201, 60 -, e ela me tomava tudo. Nem para o almoço eu ficava com dinheiro. Minha avó, quando soube, passou a me dar CR$ 50,00 cruzeiros por quinzena, o que me salvava nas refeições, pois no “Mappin”, comprávamos um carnê com vales de almoço. Muitas vezes, antes de minha avó saber das exigências que minha mãe fazia sobre o meu salário, uma colega havia me auxiliado na alimentação. Eu me sentia muito envergonhado, e evitava ficar em sua companhia na hora do almoço, sempre inventava uma desculpa e saia para caminhar pelo centro da cidade. De vez em quando, comia um pedaço de “Halawi” (doce sírio), que o dinheiro da condução dava para comprar, e passava o dia todo só água e cafezinho.

Na hora de ir embora, muitas vezes ia para casa andando, da Praça Ramos de Azevedo até a Vila Mariana. Era uma senhora caminhada, mas não tinha o que fazer, pois não tinha dinheiro para a condução.

Quando falei para minha avó o que estava acontecendo, ela de imediato passou a me dar os 50 cruzeiros por quinzena. Era desanimador, ter que trabalhar e dar todo o salário nas mãos da minha mãe.

Mas essa prática durou alguns meses, pois um belo dia, resolvi que não daria mais nada, estava decidido. Quando chegava o dia do pagamento, ficava fora, ia para a casa de um colega. Dormia por lá, e no dia seguinte, seguia direto para o trabalho. Ficava uns quatro dias fora perambulando nas casas dos colegas.

Passava em casa escondido da minha mãe, apanhava roupas limpas, e ia embora. Sentia um imenso alívio naqueles dias. Mas quando eu voltava, e aparecia, era uma gritaria só na minha orelha, fora as taponas. Ela não esquecia, e eu dizia que tinha gastado tudo, resultado, apanhava feito tapete velho, mas era assim, e não tinha o que fazer, era aceitar e aceitar.

Por causa da falta de dinheiro, ela não permitia que eu fizesse as refeições em casa. Então, minha avó, escondia pratos feitos na estufa do fogão, e quando eu chegava do trabalho, ela esquentava e me levava no quarto, lá, eu me alimentava, e posso garantir, não era fácil.

Essa coisa de cobrança tipo pensão, depois que completei 15 anos, passou a ser frequente, então sugeri que daria 30% do meu salário para acabar com os problemas, e foi assim, até os 16 anos. Minha casa havia se tornado uma pensão.

Sempre fui cumpridor de minhas obrigações, e passei a encarar aquela cobrança ridícula, como sendo uma obrigação, e no meu íntimo a coisa por si só, se aliviava, através da aceitação.

Como tudo muda, o tempo todo, estava trabalhando muito bem em um escritório de engenharia, onde um engenheiro especialista em concreto armado me ensinava desenho de projeto, cálculos diversos para concretagem de lajes, pilares e vigas. Naquela época, o Brasil não tinha, ainda, essa especialidade na área da engenharia civil. Gostava muito das aulas do engenheiro.

Meu pai, quando soube onde eu trabalhava, pediu a minha carteira de trabalho para olhar, daí foi a perdição, pois não tinha registro nenhum.

Meu pai nunca havia perguntado nada, estranhei a atitude dele, mas logo obtive a resposta, pois tinha sido a minha mãe quem teria levado a notícia que eu não era registrado no escritório de engenharia do “Espanhol”, como era chamado o engenheiro responsável, Dr Ernesto.

Então, ele foi fardado até o escritório do Dr Ernesto, que era espanhol, e o intimidou, daí o homem teve que me demitir. Foi uma coisa estúpida e sem qualquer sentido essa intromissão do meu pai em minha vida profissional. Fiquei arrasado!

Também, para completar a saga dele, me chamou no quarto, onde ficavam, e me deu cinco dias para apresentar a carteira com registro em um novo emprego. Também estipulou que a partir daquela data, deveria pagar a pensão de 50% do salário que fosse receber. Caso não conseguisse o emprego em cinco dias, deveria arrumar um lugar para morar, e sair imediatamente, no prazo por ele estipulado.

O dinheiro deveria ser dado para minha mãe, todos os meses, sempre no dia 10.

Não tinha para onde correr, teria que ser do jeito deles.

Minha avó ficava muito irritada com aquilo tudo, mas não podia bater de frente com os dois, meu pai e minha mãe, era inútil questionar o que eles decidiam.

Meus irmão Clóvis Oscar, já pagava os 50% do salário havia muito tempo.

Saulo não dava nada, e nem era cobrado. Ele era o “alcagueta” dos dois. Ouvia nossas conversas e corria contar tudo para minha mãe, uma coisa bem nojenta.

Saí naquele dia, depois das regras ditadas pelo meu pai, procurando um emprego na área da contabilidade, pois nessa época, eu já tinha certa prática com as máquinas contábeis. Havia aprendido em um escritório de contabilidade do pai de um colega de escola. Também já tinha prática em operar o “Telex”, uma máquina que era a “Web” da época. Combinava uma ligação telefônica com uma máquina de escrever que também tinha, a ela acoplada, uma perfuradora codificada em fita. Era um espetáculo, pois conversava-se com qualquer lugar do planeta pelo “Telex”. Hoje é o computador, os “smatphones”, tablets, etc...

Naquele mesmo dia, na parte da tarde, fiz um teste em um escritório contábil próximo da minha casa, uns cinco quarteirões, era tudo de bom. O salário estava ótimo, e poderia pagar pelo menos CR$ 200,00 cruzeiros e ainda ficar com uma boa quantia para a poupança e para os passeios. Poderia frequentar os bailinhos nos clubes da cidade, levar a garota para um lanche no “Nico Hamburguer”, na Vila Mariana, tomar um sorvete na sorveteria “Alaska” no Paraiso, próximo da avenida Paulista.

No dia seguinte, 08h00, lá estava eu, pronto para assumir os inúmeros documentos contábeis e começar meus trabalhos de lançamento nas máquinas “Audit 1513”. Fazia o possível para sair tudo certinho.

A quantia de 200 cruzeiros era alta, pois as pensões no bairro giravam em torno de 40 cruzeiros, com direito a duas refeições, mas como era menor de idade, e não poderia ser aceito em lugar nenhum, tinha que encarar aquela situação.

Passados alguns meses pedi para conversar com minha mãe, a fim de tratar sobre o valor que ela cobrava, pois achava uma afronta aquilo tudo.

Fui até o seu quarto, bati na porta, e a chamei para a conversa, ela logo gritou que iria sair, então me afastei e aguardei. Ela saiu do quarto com um guarda-chuva bem fininho, que pertencia ao meu avô, nas mãos. Perguntou o que eu queria, então falei que passaria a pagar apenas 100 cruzeiros, pois queria economizar para comprar roupas adequadas para me apresentar melhor no trabalho, e nos bailinhos que íamos todos os sábados, e com aquela quantia de 200 cruzeiros, a coisa estava ficando muito difícil. Isso bastou para ela virar uma criatura assustadora, daquelas que emergem das entranhas da terra, dotada de muito ódio, e totalmente desequilibrada, virou o guarda-chuva que tinha em mãos, e com o cabo de madeira, desferiu um tremendo golpe no centro da minha cabeça, na região chamada de “Moleira”, quando se é um bebê.

Fiquei muito confuso de pois da pancada, minha vista embaçou de imediato, então me virei para correr pelo corredor, e foi quando senti uma tremenda fisgada nas costas, bem no meio. De imediato fui ao chão. Meu corpo todo foi encolhendo, e de repente, eu só sentia a cabeça e a face, parecia ter me transformado em uma cabeça, apenas uma cabeça. Não tinha mais os braços, peito, corpo, pernas, enfim, o Maneco, agora, havia se transformado em uma cabeça sem corpo.

Minha visão sumiu por alguns momentos, e quando voltou, eu só enxergava a lâmpada no teto do corredor. Esta insistia em invadir minhas pupilas, chegando ao centro do meu crânio, o único que me proporcionava a sensação de estar vivo. Só cabeça, sem corpo, ainda.

Minha avó correu pra me acudir ao solo, e relatei a ela, sobre a sensação que havia se instalado em mim, pois sentia somente a cabeça, sem corpo. Ainda perguntei a ela, se ficaria daquele jeito?

Totalmente chocada com aquela cena, ela chorava muito, e começou a me levantar do chão, mas eu, ainda só sentia a cabeça, mais nada.

Com muito sacrifício, ela me tirou dali, me colocando sobre o sofá da sala. Foi para a cozinha e apanhou gelo para me colocar na cabeça, que já contemplava um tremendo caroço. Me lembro dela ter falado pra minha mãe que iria chamar a polícia pra ela, e pude ouvir a porta do covil, quer dizer, quarto, bater com toda a força.

Vovó Lála, sempre meu anjo da guarda, juntava o gelo todo em minha cabeça, e chorava copiosamente. Sentia suas lágrimas quentes em meu rosto.

Passado mais de hora, meu avô chegou, e quando viu meu estado, ficou irritadíssimo. Disse que iria tomar providências para internar minha mãe. Iria falar sério com meu pai quando ele chegasse, o que seria no dia seguinte, pois naquela noite, ele estava de plantão na sede da Guarda Civil de São Paulo, onde trabalhava.

Aos poucos, senti meu corpo voltando. Pernas e braços começavam a despontar, feito galhos de uma árvore, bem lentamente, e passado algum tempo, eu já não era só uma cabeça. Foi um alívio, pois os coleguinhas de escola não iriam ter a chance de me colocar o apelido de “Cabeça Solitária”, ou outra idiotice que quisessem inventar.

Sentia muita dor nas costas, e minha avó, assustada, chamou meu avô para ver o buraco que havia sido feito em minhas costas, pelo guarda-chuva, que por ironia, havíamos apelidado de “fura defunto”, e este, quase me furou, me transformando em um.

Meu anjo fez um curativo que doeu um bocado, com a chuva de “Merthiolate”, pois ardia que só!

Naquela noite, dormi cheio de dores diversas, e tive diversos pesadelos horríveis.

Pela manhã, acordei com muita dor nas costas, e com as pernas fracas, e depois do asseio corporal, tomei meu café com pão torrado e fui para o serviço. Não vi minha mãe e nem meus irmãos, saí antes das 07h00.

Caminhando para o serviço, senti muitas dores na lombar, no pescoço, nas pernas e nos braços, mas fui trabalhar e procurei, naquele dia, me enfiar nos comprovantes e fichas-tríplices, tudo para esquecer o que havia ocorrido.

Daquele dia em diante, passei a deixar no pagamento, 100 cruzeiros sobre os elefantes no móvel da sala, e não toquei mais no assunto.

Claro que isso tudo, gerou inúmeros desdobramentos, mas são histórias que ficarão para uma outra ocasião.

Claudio Falcão
Enviado por Claudio Falcão em 03/04/2024
Código do texto: T8034136
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