No Reino do Beleléu

Num universo paralelo próximo ao Sétimo Céu, há um lugar invisível. É um mini buraco negro, com pressão negativa capaz de sugar coisas necessárias. É o Reino do Beleléu, para onde vão coisas e pessoas esquecidas ou mal guardadas. Quem vai para lá não manda notícias: não há internet, telefone, pombos-correio ou fumaça para sinalização. Sabe aquelas coisas que sumiram e nem promessa para São Longuinho as fez reaparecer : canetas, guarda-chuvas, pés avulsos de meias, chaves, óculos ? Está tudo lá, no Reino do Beleléu.

Para comportar tanto badulaque, no Reino há um grande palácio - enormes corredores, inúmeras portas de cada lado. Cada porta abre-se para uma sala, com prateleiras do teto ao chão. Na minha sala, na prateleira “utilidades” encontrei arquivos desaparecidos do meu computador, livros, CDs, cartões de visita, reportagens e artigos que separei para ler com calma, bilhetes, anotações e até a aliança de casamento perdida em 1996.

Na ala “grandes amores”, encontrei, em ordem cronológica, os homens a quem amei. Já sei responder ao Chico Buarque “Pra onde vai um grande amor, quando o amor acaba?”. Vai para o Reino do Beleléu! Sem o mau juízo provocado pela paixão avassaladora, percebo que gostei de homens comuns, que hoje não me atrairiam a atenção. Alguns continuam interessantes, apaixonáveis. As escolhas feitas na juventude nem sempre se ratificam ao longo da vida. Além disso, a fantasia nos prega peças: guardamos na memória imagens idealizadas de quem nos marcou. Havia ainda uma enorme caixa, com todas as cartas trocadas na vida: autobiografia espontânea, escrita a tantas mãos ao longo do tempo.

Na ala de “palavras não-ditas”, encontrei os “Obrigada” que esqueci de lançar; os “Desculpe” que tantas vezes julguei desnecessários, por crer que o outro saberia que o mal causado foi involuntário. Lá estavam os “Eu te amo” que omiti, por julgar meus pais, filhos e amores telepatas, capazes de extraí-los do meu pensamento. Havia elogios perdidos para sempre, não ofertados à comida gostosa da minha mãe, à boa vontade das filhas, à tolerância dos amigos, ao apoio incondicional do marido. Não vi uma crítica sequer. Mau sinal : fui pródiga em críticas e econômica em loas.

Na prateleira de “gostos e modas”, achei batas, saiões, chinelos e flores para cabelo da minha fase hippie; calças boca-de-sino; vestidinhos da infância.... Reencontrei o gosto por filmes trash-cult; a fase do violão e dos luaus; os jogos de truco no DCE; as reuniões do Grupo de Jovens no sábado à tarde; o grupo de teatro amador...

Na ala “oportunidades perdidas”, achei a irrecusável ( e recusada!) proposta de emprego em outra cidade; situações em que deveria ter me calado; os silêncios que deveriam ter-se feito palavras. Estavam lá, catalogados, relações de poda e de controle, conversas agendadas e nunca concretizadas...

É bom ter tudo guardado no Reino. Levar este arsenal para a vida real é temerário. Arrependimento e frustração são ameaças inevitáveis para pessoas que se percebem viáveis no improviso das cenas não ensaiadas. Reconheci minha força de vontade para freqüentar academia ( então é aqui que você se esconde?!); a crença na divisão estática do Além em Céu, Inferno e Purgatório; ilusões com pessoas, amigos e a vida; o desejo utópico de mudar o mundo; a esperança no PT...

Era eu quem tinha sonhos ou eram as ilusões que me tinham?

outubro de 2007

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 05/01/2008
Reeditado em 05/01/2008
Código do texto: T803594
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