Amigo oculto no século XXI

No mundo moderno, em que tudo é digital e pessoas conversam com assistentes virtuais como se fossem seres humanos, uma tradição resistiu bravamente: o amigo oculto. Sim, mesmo em pleno século XXI, ainda existe gente mau caráter que prolifera e faz perdurar este tipo de tortura até os dias de hoje.

Ah, o amigo oculto, essa pérola de tradição que sobrevive como um teimoso resquício do passado. Enquanto o mundo avança com a velocidade de um download de 5G, o amigo oculto permanece, mais retrógrado que os passos do curupira.

Pra onde quer que você olhe, lá está ele. Nas salas de aula, grupos de amigos, famílias e, principalmente nos escritórios, tornando mais denso o ambiente de trabalho e deixando profissionais prontos para embarcar na aventura de presentear (ou sacanear) seus colegas.

Imagine a cena: um grupo de adultos supostamente responsáveis, em pé, em círculo, olhando uns para os outros com sorrisos forçados. As mãos suando, os olhos desviando, todos pensando: “Será que vou ganhar uma meia furada ou um porta-retrato com a foto do chefe?”

E então começa o sorteio. O suspense é insuportável. Cada papelzinho retirado do saquinho é como um bingo da decepção. Em meio a este caos, surgem pensamentos como “Será que vou tirar o colega que nunca lava a caneca? Ou o que sempre pede emprestado e nunca devolve?”.

Eis que chega a sua vez. Enquanto você lê, seu subconsciente lhe acusa: “Parabéns, agora você fica obrigado a gastar seu dinheiro suado para presentear alguém de quem não gosta e com quem é obrigado a conviver!” A decepção é tamanha, que não se pode esconder a expressão facial como a de quem sente um odor desagradável.

Passado esse momento, nota-se que ninguém se manifestou acerca do tipo de presente que gostaria de ganhar. Então, na tentativa de atenuar uma decepção futura, você, em voz alta, avisa aos outros.

– Pessoal, o que acham de dizermos o que gostaríamos de ganhar?

Subitamente, o colega gordo, depravado e imaturo, beirando os 30 anos de idade, não hesita em responder.

– Acho uma boa ideia, sabe, até porque não temos como adivinhar. Eu tenho duas bolas, mas nenhuma é de cristal.

Por um momento a sala fica em silêncio e todos se entreolhando enquanto o gordo depravado, aos berros, ri sozinho de sua própria piada infantil. Com isso, você cria uma pequena esperança na humanidade ao perceber que seus colegas ainda tinham o mínimo de senso.

– Ah, mas desse jeito eu acho que estraga a surpresa! — diz a patricinha com seu tom de voz repugnante.

Pra piorar, a puxa-saco do chefe reforça a ideia de jerico.

– É verdade, seria muito melhor se pudéssemos ser surpreendidos. Você não acha, chefinho? — Diz ela fitando os olhos no chefe com um sorriso de canto de boca e seu puxa-saquismo usual.

– Concordo com você! Vamos deixar assim. De uma maneira mais livre.

Ao dizer aquilo, consuma-se o que de pior se esperava. Quem é que teria a audácia de contrariar o chefe?

Depois de alguns dias, vem a parte divertida: escolher o presente. Você pondera entre uma camiseta escrita “Jesus te ama porque ele não convive com você” e uma agenda com os seguintes dizeres na capa: “ideias brilhantes que eu nunca vou pôr em prática”. Ambas opções parecem igualmente apropriadas.

No dia da revelação, reúnem-se em torno da árvore de Natal improvisada, que basicamente é feita de um vaso de planta em cuja terra jaz fincado um cabo de vassoura repleto de filetes de cerdas colados com fita adesiva. Neste ambiente paradisíaco, todos trocam olhares nervosos. É chegada a hora, o momento em que você entrega o presente com um sorriso amarelo, enquanto o destinatário, com o carisma de uma lagartixa, desembrulha o presente com a mesma expectativa de quem aguarda ser chamado pelo médico na recepção de um hospital. E lá estão todos reunidos. O chefe, o gordo depravado, a puxa-saco, a patricinha, o reclamão, o estagiário, e você, o único funcionário que ainda tinha uma sã consciência.

Com o objetivo de acabar logo com esse sofrimento, você resolve iniciar e vai direto ao ponto, anunciando que tirou o chefe, que por sua vez, fica confuso ao abrir o presente.

– Ué, mas o que é isso?

– Um caminhão de brinquedo, oras, não está vendo?

– Sim, mas…

– É pra descarregar essa carga negativa que você tem.

Houve um curto momento de silêncio que logo foi interrompido por meia dúzia de palmas tímidas.

O chefe havia tirado justamente quem ele não queria tirar. Que ninguém queria, aliás. O reclamão, que, ao abrir seu presente, indaga:

– Um cartão?

– Sim, mas não é um cartão qualquer. Solicitei ao setor de Recursos Humanos que lhe concedesse um cartão de vale-transporte, já que você vive reclamando que mora longe.

– E quanto veio nele?

– Está zerado.

– Então não adianta nada, chefe. Que vantagem há nisso?

– Ora, como não adianta? É só você recarregá-lo. E a vantagem é que você não precisa andar com o dinheiro em espécie nas mãos.

– Bem, mas o senhor sabe que eu moro longe da rodoviária e teria que andar a pé até lá para fazer a recarga. E se eu teria que andar a pé, qual é a funcionalidade do cartão, que tem justamento o intuito de me fornecer transporte?

O chefe ficou calado com uma cara de profundo desgosto.

– Além disso — continuou o reclamão –, se eu estiver sempre com um trocadinho na carteira, eu torno mais feliz a vida dos cobradores de ônibus.

– E a dos assaltantes também — ironiza o chefe.

O constrangimento era tanto, que todos desviavam olhares entre si. Milagrosamente, uma ideia sensata surgiu na cabeça do gordo depravado, que, querendo cessar aquela situação, proclamou:

– Chefe, antes de continuarmos posso contar uma piada?

– NÃO! — vociferaram todos juntos.

O reclamão, ainda em processo de acalmar os nervos, resolve continuar o evento.

– A minha amiga oculta é uma pessoa muito mimada.

Todos já sabiam que era a patricinha, inclusive ela. Então ele se aproxima e entrega o presente.

– Nossa! Como é grande! — diz a patricinha tentando abrir o presente.

– É grande porque tem dois presentes, espero que você goste — dizia ele em tom de sarcasmo.

Ao terminar de abrir, ela nem teve chance de dizer algo, pois o reclamão se adiantara.

– É um mapa estelar do universo. Pra te lembrar de que seus problemas são pequenos demais pra você ficar reclamando o tempo todo.

– Então esse presente deveria ser seu — diz ela enfurecida.

Ele a ignora e prossegue:

– O outro presente é uma maquete do sistema solar. Pra você saber que o mundo gira em torno do sol, não de você!

– HAHAHA! ESSA FOI MUITO BOA! — exclamou o gordo depravado.

– Fica quieto, balofo! Cala essa boca que só é aberta pra duas funções: comer muito e defecar — vocifera a patricinha indignada.

– Ora, você me respeite, que você não está num filme em Beverly Hills!

Àquela altura, todos já tinham perdido a paciência. Percebendo isso, o chefe deu um brado.

– Ok, pessoal, vamos continuar a brincadeira.

– Certo — diz a patricinha –, eu tirei uma pessoa que, infelizmente, não tem condições muito favoráveis devido ao seu baixo salário, vem trabalhar de bicicleta e já me confessou que ao final do mês tem de escolher entre cortar o cabelo e recarregar os créditos do celular pois só lhe sobram vinte e cinco reais.

– A gente sabe que você não gosta de pobre — diz o estagiário –, mas precisava ser tão específica e me humilhar?

– Ah, seu bobinho, é só uma brincadeira — ela diz.

– Êêêê! — aplaudiam todos enquanto, em alta voz, forçavam um falso entusiasmo e morriam de vergonha.

O estagiário abre o presente que estava num pequeno embrulho.

– Ah, muito obrigado, viu?! — diz num tom de extrema ironia — Eu nem sabia que isso ainda existia.

A patricinha, com um sorriso que ia de uma orelha a outra, diz num tom de deboche agudo:

– É um cartão. De recarga. De celular!

– Pois é, estou vendo. Pelo menos na saúde visual eu ainda não sou pobre. Pena que seus óculos com lentes fundas não me permitem dizer o mesmo.

Sem dar a ela uma chance de retrucar, o estagiário, dirigindo a palavra a todos, dizia.

– Eu tirei alguém que adora o nosso chefe.

A puxa saco deu um leve e discreto sorriso que ninguém percebeu.

– Uma pessoa que é muito próxima ao nosso querido… chefinho — enfatizou o estagiário –. Que sempre faz reuniões a sós com ele, com a porta da sala trancada, que sempre volta pra casa de carona com ele, que inclusive foi até promovida de cargo pelo chefe recentemente. Enfim, é uma pessoa que é tão amiga do chefe a ponto de visitar sua casa até mesmo quando sua esposa não está…

– COF! COF! — tossiu o chefe, que estava trêmulo — Ga-garoto… p-pode ir direto ao ponto, senão nós só vamos acabar amanhã — gaguejou meio engasgado.

Então você vê a oportunidade de demonstrar sua insatisfação e não pode perdê-la.

– É verdade, vamos continuar porque temos hora pra terminar. Depois do expediente a empresa não vai nos pagar hora extra por estarmos fazendo uma brincadeira inútil!

Assim, o estagiário segue e revela que havia tirado a puxa-saco do chefe, como se todos já não soubessem depois da descrição. Ela termina de tirar o presente o saco. Era uma caixa.

– Mas aqui diz “kit para cultivo de cactos” — questionou ela apontando para o que estava escrito na caixa — quem te enganou que eu gosto de plantas? Eu nem tenho plantas.

– Ninguém. É que eu pensei que um kit para cultivo de cactos seria perfeito pra quem tem um coração tão espinhoso como você! — disse ele debochando.

– Você ouviu isso, chefinho? O senhor vai deixar??

Ela não poderia perder a oportunidade de correr para o chefe, como sempre fazia. E, em defesa dela, o chefe exclamava em alta voz:

– Pessoal, por favor! Já estamos quase acabando. Não vamos arranjar motivo para birras agora. Somos uma ótima equipe e não queremos estragar a nossa boa convivência, certo?

É nessa hora que você tem que se segurar para não rir de algo que, se não for ironia, só poderia ser piada. Boa convivência? Pessoas que vivem tentando prejudicar umas às outras, falam mal pelas costas e ainda se dividem em grupos que segregam o restante.

– Certo, chefinho — dizia ela com sua voz irritante –, vou prosseguir. Eu tirei uma pessoa muito sem noção. Talvez a mais inconveniente deste escritório.

Seria algo para se ficar na dúvida entre a patricinha e o gordo depravado, mas como a patricinha já tinha sido tirada, só restava uma opção. Então você logo se adianta:

– Já sei! Foi o gordo!

– Ora, seu bostinha, cale a boca! Eu tenho nome! — dizia o balofo.

– Ah, jura? Desculpe amigo, é que sua cara é tão redonda que pensei que sua foto do documento tapava o nome.

Sem que desse tempo do gordo revidar, ela confirma que realmente tinha o tirado. Assim, ele já foi logo abrindo seu presente com sofreguidão, como um faminto ávido por um prato de comida.

– HAHAHA! Essa foi hilária! Muito boa mesmo! — diz o gordo rindo da própria desgraça.

Seu presente era um caderno de receitas com o título na capa: “não deixe para amanhã o que você pode comer hoje”.

– Acho que o senhor também merecia um desse hein, chefinho?! — diz o gordo rindo sozinho.

Após todo o caos vexatório, você se dá conta de que todos já haviam ganhado seus presentes, exceto você. E o pior de tudo: só faltava o gordo dizer quem ele tirara. Por dedução óbvia você percebe que o gordo te tirou e se martiriza com o pensamento: “era só o que me faltava, que diabos eu fiz pra merecer isso?”.

Os colegas, que raciocinavam um pouquinho melhor que o gordo, lançavam no ar em tons de ironia “quem será que ele tirou, hein?”. Ouvir essas palavras constrangedoras e insalubres é como ser atingido por uma chuva de limões. Cada sílaba é um ácido corrosivo que queima a pele e deixa marcas invisíveis. Você, então, sente vontade de jogar piche quente num ouvido e ácido sulfúrico no outro, para tentar obter o mínimo de alívio.

– Eu tirei a pessoa que não gosta de amigo oculto — diz o gordo enquanto todos te encaram.

Assim começa um daqueles momentos em que a vontade de desaparecer é praticamente palpável, mas que deve ser enfrentado, pois, infelizmente, você ainda não desenvolveu a habilidade de se tornar invisível.

Enquanto as palavras do barrigudo pairam no ar, suas entranhas se contorcem em desconforto. É como se tivessem acendido um holofote sobre sua aversão ao amigo oculto, com todos os olhares direcionados pra você, analisando cada pedaço da sua inadequação social. Talvez você seja um pouco antiquado, talvez seja apenas um mau humor crônico se manifestando, mas a ideia de trocar presentes arbitrários com pessoas que confundem os conceitos de “colega de trabalho” e “amigo” não o encanta.

E então, lá está você, encarando o abismo da sua própria excentricidade, enquanto o os cintilantes olhos de condenação dos seus colegas ecoam ao seu redor. Será que haviam descoberto o seu segredo mais obscuro? Ou foi algo espontâneo, como um espirro inoportuno enquanto o padre reza a missa?

Antes que uma resposta apareça, todos os pensamentos são instantaneamente interrompidos quando o gordo revela o óbvio: que tirou você.

Mais idiota que o gordo, só o presente: Um pacote de post-its com mensagens… digamos, motivacionais.

– Gostou, otário? — diz o balofo.

– Para saber eu preciso ler, deixe-me ver…

Para tentar constranger o gordo depravado, você começa a ler. Uma a uma.

– “os sonhos antecedem seus fracassos”, “no começo é difícil, mas no final dará tudo errado”, “você é mais fraco do que você pensa”, “nunca foi azar, sempre foi incompetência”, “coisas ruins se vão para que coisas piores venham”, “desistir é para os fracos. Nem tente!”, “Nunca subestime a sua incapacidade”, “reclame menos, fracasse mais”, “nunca deixe alguém dizer que você não é capaz. Diga você mesmo”, “lute como nunca, perca como sempre”, “sem lutas, não há derrotas”, “o recomeço é uma nova oportunidade para um novo fracasso”…

E assim continua até chegar na última delas: “amigo oculto não é a pior coisa do mundo, você que é um jovem ranzinza e pessimista”.

– Essas frases são a sua cara! Principalmente a última! — exclamou o gordo.

– Até que, pra um cara com as mobilidades reduzidas pela obesidade, você é rápido em perceber certas coisas.

Com a sutileza de um elefante rosa entrando numa biblioteca, o gordo dá de ombros e finge não se importar com as palavras.

Não bastasse toda a tensão já presente, o chefe decide intervir com um discurso motivacional, provavelmente inspirado em algum livro de autoajuda que ele leu recentemente. Com um sorriso forçado e gestos exagerados, ele começa:

– Meus queridos colegas, amigos, colaboradores… hoje é um dia muito especial para nós, um dia em que celebramos não apenas a troca de presentes, mas também a troca de afetos, de sorrisos e de… bem, de post-its com mensagens motivacionais!

É impossível conter uma risada discreta diante da sua tentativa desajeitada de elevar o ânimo da equipe. Ele continua:

– Vejam só, o amigo oculto é como um jogo, um jogo da vida! Assim como no xadrez, cada movimento é importante, cada peça tem seu valor… assim como cada presente tem seu significado! E o que importa não é o tamanho do presente, mas sim o tamanho do… bem, o tamanho do… ah, vocês entenderam!

Percebe-se em todos um misto de pena e constrangimento e diversão diante das desastradas analogias do chefe, que parece tão empenhado em transmitir uma mensagem positiva que acaba se perdendo, até que você tenta intervir:

– Sim, claro, chefe! Como no jogo da vida, às vezes nós recebemos um cavalo quando estávamos esperando uma rainha, mas o importante é saber dar o xeque-mate com as peças que temos, não é mesmo? Afinal, não é toda rainha que pode se orgulhar de ter um cavalo tão… robusto!

– Está falando de mim? — gungunou o gordo.

– Como eu dizia — prosseguiu o chefe –, nossa equipe tem um ótimo convívio e a união da nossa equipe precisa ser assim, constante. Porque hoje em dia existe muita gente volátil…

– Ei, chefe — interrompeu o gordo –, o senhor sabe qual é o oposto de volátil?

– Não sei. Qual é?

– Vem cá, sobrinho! — respondeu o gordo dando uma risada que mais parecia uma imitação fajuta de um motor de celta tentando dar partida numa manhã congelante.

Após a amostra grátis de eternidade dos cinco segundos do silêncio constrangedor, continuou o chefe:

– Pessoal, eu peço, por gentileza, que não me interrompam com perguntinhas bobas enquanto eu estiver falando. Pois bem, mais um amigo oculto se encerra, com seus altos e baixos, como uma montanha-russa de emoções… ou como uma pizza doce, que uns amam e outros odeiam.

Outra oportunidade surge de demonstrar sua indignação em voz alta e você aproveita:

– E como odeiam!

O chefe prolonga seu discurso por mais alguns torturantes minutos e você percebe que de nada adiantou tomar a iniciativa de começar, afinal cada segundo foi como andar descalço em brasa viva.

Por fim, ele termina seu discurso motivacional, e todos se entreolham com um misto de alívio e cansaço. Os aplausos, ainda que tímidos, ecoam pelo ambiente enquanto os colegas se abraçam falsamente, brindando suas hipocrisias com sorrisos forçados.

Os minutos passam e, depois dessa breve pausa para o fingimento, o clima artificial de alegria se dissipa. Os abraços falsos se transformam em despedidas apáticas, e cada um volta para seu cubículo, carregando o peso da realidade monótona e medíocre da vida profissional, que contempla as relações superficiais e desgastadas que permeiam o cotidiano do escritório, além da eterna busca por uma felicidade tão ilusória quanto o próprio amigo oculto.

E assim, o ciclo se repete. O amigo oculto, essa tradição que deveria ser sepultada junto com o uso de sandálias crocs e pochetes, continua a nos assolar. Mas quem sabe, talvez um dia, alguém escreva um livro intitulado “Tradições antiquadas que deveriam ser extintas”. Até lá, brindemos ao amigo oculto e à nossa sanidade mental, que vai se esvaindo a cada dezembro.