A paz que eu não quero

É muito bonito que os presidentes da França e do Brasil teçam loas à paz, mas vejam como os discursos deles ainda são plenamente marcados pela ideia de país, de pátria, de nação, enfim, de todas essas abstrações que, por meio de fronteiras, servem para que os sujeitos daqui se julguem mais especiais ou com mais direitos que os sujeitos dali – e, no fim das contas, é a partir desse mesmíssimo conflito que todas as guerras começam.

O presidente da França, por exemplo, chama o seu próprio país e o nosso de “potências”, e o diz com orgulho, manifestando assim a crença em uma superioridade em relação aos países que, infelizmente, não são potências. Se acredito que sou potência, reivindico para mim um protagonismo que, fatalmente, fará com que considere os meus interesses mais urgentes que o de outros – e isso provoca injustiças, conflitos, disputas e, claro, guerras.

O representante da terra de Victor Hugo deixou claro também que potências são países que “não querem ser lacaios dos outros” e defendeu o uso da força para “defender com credibilidade a ordem internacional”. Evidentemente, jamais ocorreria a ele pensar que um francês é uma pessoa praticamente idêntica a qualquer outro que ele não governa – um chama cerveja de “bière”, outro de “beer” ou “Bier”, mas de resto pouca coisa muda.

Ele insiste na distinção entre “eles” e “os outros”, de quem não quer ser lacaio, embora nada tenha sido dito sobre a hipótese de que os proprietários de lacaios sejamos nós. Seja como for, está convicto de que a divisão permanecerá, jamais a França deixará de ser a França, e para isso está disposto a usar a força – o que significa que, tão logo se julguem vítimas de uma injustiça, também as “potências pacíficas” empreenderão uma guerra.

Naturalmente, quando uma potência pacífica empreende uma guerra, ela não irá chamar de guerra, mas de “defender com credibilidade a ordem internacional”, e nunca se soube na história humana que um dos lados da guerra não tenha acreditado que a sua posição era justa, necessária, digna de toda a credibilidade e a única capaz de garantir a ordem. Em suma, o que falta à França e ao Brasil para iniciar uma guerra é apenas oportunidade.

Não há nenhuma espécie de impedimento moral contra a guerra, pois, por mais que os dois mandatários saúdem a paz, seus discursos evidenciam a prontidão com que irão agir caso se sintam atingidos. O brasileiro seguiu a mesma linha, manifestando a sua crença de que a paz é algo que só virá se nossos mecanismos de defesa estiverem equipados suficientemente para reagir com violência quando agirem com violência contra a gente.

Ora, a paz, a paz mesmo, será sempre ameaçada enquanto existirem as noções fictícias que atualmente separam um ser humano de outro. É possível que daqui a alguns séculos essa nossa divisão em países e fronteiras cause um horror tão grande quanto o que hoje provoca a escravidão: “Será possível que realmente achavam que isso era certo?”. E então a ideia de uma paz que vem pelas armas será motivo de constrangimento ou de risadas.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 08/04/2024
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