DESABAFOS ANIMADOS

Hoje foi um daqueles dias em que meu ânimo decidiu não vir. Estou com uma preguiça sem precedentes.

Eu amo dar aula e como trabalho numa escola de período integral, por aqui tem uma coisa chamada Tutoria, em que duas vezes na semana atendemos durante o tempo de quarenta e cinco minutos três alunos. Mas sou o único que decidiu fazer atendimento diário e reservando para cada estudante que deseja conversar sobre o quiser, leve o tempo que precisar. E amo fazer isso.

Quando entro em sala de aula é como se adentrasse os portões da fantasia, onde luto com dragões invisíveis. E sou bom nisso, modéstia à parte. Os alunos aprendem, se divertem, pois amam a minha aula e ouço isso todos os dias. Eu trabalho e me divirto.

Fora que utilizo minhas redes sociais como Instagram e Facebook para continuar interagindo com eles com perguntas, desafios e (uma coisa que adoram) postar foto com meus preferidos.

Tenho o costume de pensar numa aula excelente antes e depois do horário, além de planejar tiradas interessantes para usar em sala.

Ou seja: sou feliz e realizado. Não tem como não ser animado diante de algo que fazemos com tanto gosto.

Exceto hoje. Entrei em sala e simplesmente não passei NADA nas duas primeiras aulas. Enquanto escrevo essa crônica tenho mais quatro aulas pela frente. E não tenho um pingo de vontade de olhar para os alunos.

Não estou rindo de nenhuma piada deles, apenas sorrio. Eles percebem e perguntam se estou bem. Digo que estou e realmente estou. O que será que deu em mim?

A palavra “alma” em latim é “anima”. “Desânimo” significa “sem alma”. Estou meio assim. Não encontrei o brilho nem o entusiasmo costumeiros do meu trabalho em nada daquilo que fiz hoje. Aliás, descontei até na comida: devorei três espetinhos; um de camarão, um medalhão e um de coração. Com uma coquinha gelada. Em seguida comprei um cone de chocolate. Tudo isso sem ânimo e sem fome nenhuma! Minha barriga está até atrapalhando a escrita, pois os dedos esbarram na superfície do “bucho” enquanto digito.

Bom... posso pensar em alguns motivos.

De ontem para hoje tive que passar a madrugada inteira com meu sogro no hospital público esperando atendimento. Dengue. Oh doença dos infernos! Deixei-o em sua casa e ao voltar para a minha já tinha até perdido o sono.

Além do sono mal dormido, pela manhã tive um curso muito bom que o governo disponibiliza para os professores realizarem voluntariamente. É voluntário? É. Mas se você não se inscrever eles descontam do seu salário.

Aliado a tudo isso, tem o fato de que essa semana é encerramento do 1º bimestre e ela é chamada de SEI – Semana de Estudos Intensivos (só SEI que nada SEI). Os professores devem fazer atividades diferenciadas e lúdicas com suas turmas para incentivá-los aos estudos. Nenhuma ideia me veio à mente. Nada! Isso porque já gastei com eles mais de R$ 100,00 com chocolates e besteirinhas fazendo competições premiando os melhores alunos.

Creio que me vi esgotado. É isso. Esgotado.

Devo ter me dedicado tanto, cegamente ou não, que não percebi que fui sendo drenado aos poucos. Como se eu estivesse vivendo para isso. Estava considerando o trabalho como algo além do que só trabalho. Eu queria o destaque, o auge, ser lembrado por todos como um excelente professor, amado por muitos, odiado por... ninguém.

Às vezes me pego pensando se não estou agindo feito o chefe do escritório da série “The Office”, interpretado pelo maravilhoso Steve Carell, onde Michael Scott tenta ser o centro das atenções o tempo todo e inúmeros momentos constrangedores surgem de suas atitudes.

Ou se simplesmente eu deveria reconhecer que sou um ser humano como qualquer outro com sentimentos, desejos e expectativas que, por vezes, não são alcançadas.

Estaria eu ansioso e angustiado por causa da saúde do meu sogro ou será que também estou com receio de, quando não eu, minha amada esposa Allana ou algum ente querido, caia de cama com dengue, uma vez que vejo essa enfermidade se alastrar como fogo acometendo parentes distantes, amigos, irmãos em Cristo, colegas de profissão e até alunos?

Reconheci meus limites? Vi-me em situação semelhante alguma vez ou ignoro que não sei tudo?

Olha, para ser sincero sinto-me mais aliviado de poder desabafar numa crônica em que quase ninguém vai ler. Nem minha própria família. Contudo, é bom saber que a escrita ainda pode ajudar-nos a mapear nossos problemas, seja revelando a causa ou nos direcionando para uma reflexão que nos joga rumo à solução.

Já já entrarei em sala. Por hoje é só e fica a lição: todos podemos aprender com nossos limites e que eles devem ser respeitados, mas também superados, se quisermos ter nossa “alma” de volta.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 09/04/2024
Reeditado em 10/04/2024
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