A crônica reproduzida abaixo não é de minha autoria,,, é  de Rogério Newton  um cidadão de Oeiras, cidade da minha esposa, professora Socorro Maranhão. O ilustre cronista publicou  no  " IN GRÃO",  em 2011, esta belíssima crônica sobre um homem que era considerado pelos cidadãos de Oeiras, como o melhor goleiro do mundo.  Chico Castanhola.

O MAIOR GOLEIRO DO MUNDO

  por  ROGÉRIO NEWTON

_ "O que fiz muito na vida foi jogar futebol. De menino até uns dez anos atrás, corri muito atrás de bola. Mas, mesmo tendo jogado tanto e ainda batendo uma bolinha de vez em quando, nada há que se compare aos tempos de criança. Aliás, Futebol Tem Gosto de Infância é o título de uma das seções da coletânea de crônicas O Mundo é Uma Bola, que meu filho Carlinhos trouxe hoje da escola. Foi o suficiente para eu largar tudo que estava fazendo e me deliciar na leitura. Gosto mesmo! E, se a narrativa tem criança por protagonista, adoro mais ainda. Aí duas coisas que dão – ou davam – certo: infância e futebol.

Pois não é que hoje estava passando pelo setor da universidade onde se vendem livros e o que vi? Uma publicação que destacava uma foto do imortal Manga em pleno voo. O fotógrafo apanhou o jogador muito acima do chão, vendo-se ao fundo o Maracanã lotado. A imagem, em sépia, não podia ser melhor para ilustrar a capa de Goleiros – Heróis e Anti-Heróis da Camisa 1, do jornalista paulistano Paulo Guilherme. Parei, peguei o livro nas mãos, folheei as páginas e imediatamente me lembrei do extraordinário goleiro da minha infância: Chico Castanhola.

Como falar dele sem me emocionar? Castanhola morava na última casa da Rua das Pataratas, já beirando o riacho Pouca Vergonha. Foi nessa rua que um dia fizemos e batizamos o Estádio Belo Boi. Não era estádio coisa nenhuma, nem construímos nada, apenas retiramos as pedras, enfiamos bambus para servir de trave, e pronto: estava perfeita a praça de esportes. Quando digo fizemos, é bom mencionar os outros autores da obra: Xico Carbó, Filim, Valdir, Luis de Pedro Serra, Tupã e mais dois ou três que não lembro. Mas um dia cansamos daquele campo e o deixamos.

Na época do Belo Boi, Chico Castanhola já era um goleiro decadente. Mesmo assim, fez uma exibição inesquecível na cidade de Picos, onde todos o aplaudiram. No dia seguinte, pronunciava-se o nome dele como a um deus. Um olheiro o procurou falando em contrato profissional. Mas já era tarde, talvez a despedida. A última façanha de um goleiro ágil e destemido que encheu de assombro os olhos da minha infância, jogando pelo Cruzeiro e pela seleção de Oeiras.

Vou contar como o conheci. Foi no Círculo Operário, onde os jogadores do Cruzeiro se concentravam antes de seguirem para o estádio. Inquieto, falastrão, era de seu natural o gingado rude do caminhar. Quando calçava as chuteiras e vestia a camisa azul de mangas compridas e estrelas brancas no peito, agigantava-se. Deixava de ser goleiro para se tornar uma entidade. Quando o time entrava em campo, ia na frente como um guerreiro. Mas era durante a partida que se revelava: os voos de gato, as defesas impossíveis, a coragem de atirar-se e agarrar a bola nos pés do centroavante matador.

O que o menino não podia compreender era o supremo paradoxo. Como aquele goleiro fantástico podia ter uma existência degradada? Ao talento não correspondia tino para a vida. A imagem do atleta invejável, os aplausos e a glória dos estádios pobres de nada valeram para livrá-lo de caminhos tortuosos. Castanhola meteu-se em uma confusão atrás da outra. Depois de muito aprontar, ficou cego de um olho, e uma vez, no mercado, uma prostituta quase lhe parte a cabeça com uma rapadura. Para quem o conheceu na fase áurea do Cruzeiro foi doloroso vê-lo naquele estado, consumido pelo álcool e pela miséria.

Há outra lembrança que o coloca num lugar especial nas minhas memórias da infância. Foi na casa dele que um dia Xico Carbó e eu o vimos fazer formas de barro para máscaras de carnaval, na mesma casa onde a mãe ou as tias fabricavam cabacinhas de cheiro para as delícias e brincadeiras de foliões, num tempo em que a inocência não se havia perdido.

Mas o que importa hoje, tendo nas mãos a edição primorosa de Goleiros, é que, embora não apareça em nenhuma das páginas que celebram com justiça as glórias de um Gilmar, de um Castilho, de um Pompeia e de muitos craques da trave, o lugar de Chico Castanhola está garantido. Se não na história dos vencedores, no coração do menino que viu maravilhado, nos campos poeirentos de uma cidadezinha do sertão, o melhor goleiro do mundo."

Rogério Newton, “In” Grão, Edições Pulsar, Teresina, 2011, pág. 179,.

Rogério Newton
Enviado por Marcus Aurelius em 20/04/2024
Reeditado em 20/04/2024
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